Pioneira na internet no Brasil, liderou a equipe que criou a FolhaWeb em julho de 1995 e foi diretora de conte�do do UOL de 1996 a 2011.
Veneza
O condutor do Vaporetto olha displicentemente a paisagem empunhando um celular. Os passageiros entram e saem. Uma garota atende do outro lado da linha.
Ele prop�e um sorvete para aquela noite. Ela responde n�o, n�o e n�o. O condutor faz cara de paisagem. Arsenale, Pi�ta, San Marco-San Zaccaria. Passageiros continuam a entrar e sair.
Alpino | ||
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Os italianos usam intensamente o celular h� d�cadas. Lembro de Roma, muitos anos atr�s. Rapazes com roupas e cabelos bem cortados falavam nas ruas com os seus aparelhos enquanto se locomoviam rapidamente para seus destinos.
Um senhor mais velho retirava uma cer�mica do ch�o, bem embaixo da sua cal�ada, num achado arqueol�gico casual.
Penso na hist�ria da tecnologia e no conceito que se faz dela hoje. Penso no que os antigos nos deixaram como hist�ria material, as cer�micas, as cidades, as estradas, os aquedutos, as tape�arias, os pal�cios, as pontes, as esculturas, os sinos, as torres, as pinturas.
Leio agora que o ex-presidente da Telecom It�lia acaba de ser condenado � pris�o. Penso nos conspiradores, nos corruptos, nos condenados que passaram pela ponte dos Suspiros que leva �s masmorras no pal�cio Ducale. Masmorras maiores, mais arejadas e mais iluminadas que tantos quartos de empregada do Brasil de hoje.
Masmorras bem trancadas, com grades e cadeados que venceram os s�culos. Leio sobre a sala de tortura onde confiss�es eram arrancadas ou forjadas. Arquitetura e tecnologia a servi�o de manter o poder nas m�os de quem j� o tem.
Olho as figuras retratadas nas pinturas do s�culo 16. Tintoretto, Veronese. Pol�ticos, anjos, mitos, nobres, santos, Deus. O touro e o rapto de Europa. A madeira talhada, a sala de armas, os canh�es, as espadas, os escudos, as pistolas, as armaduras. Penso na peste negra que um dia dizimou metade da popula��o local.
Volto um instante para a atualidade, as armas qu�micas, a aus�ncia de armas qu�micas, os antibi�ticos, a falta de antibi�ticos, os drones, as guerras tribais. Lembro da Atenas bombardeada.
Vejo as esculturas gigantes no pal�cio Ducale e penso na admira��o infinita que a arte grega cl�ssica inspirou. T�cnica, tecnologia. A destrui��o da arte. A sobreviv�ncia da arte. N�o vim a Veneza para me desintoxicar de equipamentos eletr�nicos. Seria apenas um efeito colateral desej�vel.
E, a bem da verdade, nem pensei muito neles. At� que o telefone, que eu programara sem roaming para evitar as tarifas obscenas e usava como m�quina fotogr�fica, tocou.
Eu subia a torre da piazza San Marco. A liga��o ficou ruim. Confiei em n�o me preocupar.
O que eu poderia fazer l� de cima? � noite, quando eu me ligasse ao wi-fi do hotel, haveria algum e-mail, algum WhatsApp, algum Instagram me esperando.
Ningu�m fica invis�vel quando se conecta. Ningu�m mais viaja escondido. As muralhas que podiam separar a vida privada da vida profissional foram seriamente danificadas. Se o condutor n�o tivesse telefonado para a garota durante a jornada, talvez pudesse continuar sonhando com o sorvete da noite por mais algumas horas.
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