Economista, diplomata e cientista social, dirige o BRICLab da Universidade Columbia em NY, onde � professor-adjunto de rela��es internacionais e pol�ticas p�blicas. Escreve �s quartas.
Cirus, quarteto dominante da nova ordem global
Os analistas de rela��es internacionais adoram acr�nimos e abreviaturas. Brics, G-7, UE —algumas combina��es de letras que buscam explicar diferentes arquiteturas de poder, prosperidade e prest�gio.
N�o gostaria de aumentar muito essa j� extensa lista de siglas. Contudo, acho imposs�vel, nesse refundar da ordem internacional, deixar de sugerir que "Cirus" (sequ�ncia em ingl�s para China, �ndia, R�ssia e EUA) representa o quarteto de maior import�ncia nos palcos globais.
Desde a vit�ria de Donald Trump nos EUA, proliferam as avalia��es de que o "Ocidente acabou". Se, com a Guerra Fria, o termo respondia menos a uma refer�ncia geogr�fica e mais a uma vis�o de mundo que abra�ava a economia de mercado, democracia representativa e um sistema internacional baseado em regras, o Ocidente est� pelo menos em xeque.
EUA e Reino Unido (para Churchill, a dupla fundadora da ideia de Ocidente) passaram, com "brexit" e Trump, a questionar pressupostos como a primazia do livre com�rcio. A alian�a ocidental, que do ponto de vista geopol�tico tem na Otan (Organiza��o do Tratado do Atl�ntico Norte) um dos pilares, � pesadamente criticada pelo presidente eleito dos EUA.
A pr�pria ideia de uma Europa integrada, central � pol�tica externa de Washington e Londres h� d�cadas, j� foi abandonada. Reino Unido, e sobretudo os EUA, preferem adotar uma posi��o que privilegia os entendimentos bilaterais, aqui compreendidos como rela��es entre Estados-na��o, e n�o entre pa�ses e blocos.
Resulta disso n�o apenas o enfraquecimento relativo da Uni�o Europeia, mas, em consequ�ncia, do pr�prio G-8, dada a ojeriza do novo presidente americano por foros plurilaterais.
Nesse contexto, em que talvez se legitime a ideia do que seria um mundo "p�s-ocidental", � claro que os EUA ainda t�m amplo lugar � mesa. Embora a economia americana deva perder o posto de maior do mundo nos pr�ximos 15 anos para a China, o peso relativo e a capacidade de gerar fluxos de riqueza e inova��o continuar�o a ter sua dire��o determinada em grande medida pelos EUA.
Se, com a elei��o de Trump, os EUA sem d�vida tiveram seu "soft power" muito diminu�do, do ponto de vista geoestrat�gico nada se compara com o poderio americano de for�as convencionais e, claro, de dissuas�o nuclear. E, nesse sentido, os EUA continuar�o por bastante tempo ainda como �nica superpot�ncia operacional do planeta.
Embora protagonistas, na ordem global que se descortina os EUA certamente n�o ser�o hegem�nicos. Aqui, claro, a principal pot�ncia com quem medir-se ser� a China. Pequim concorda em assumir o volante da globaliza��o econ�mica, da qual aparentemente os EUA de Trump preferem afastar-se de forma volunt�ria.
Isso vale n�o apenas para o tema de com�rcio, �rea em que a China ocupa espa�os j� que os EUA sinalizam o abandono de mega-acordos no Pac�fico e no Atl�ntico, mas tamb�m em investimentos e financiamento do desenvolvimento, setores em que os bancos chineses j� desempenham papel maior do que todas as institui��es multilaterais ocidentais (Banco Mundial etc.) juntas. Na �rea de inova��o, a China j� disputa cabe�a-a-cabe�a com os pa�ses da OCDE o n�mero de patentes depositadas a cada ano da OMPI (Organiza��o Mundial da Propriedade Intelectual).
Na ordem global que vem por a�, tamb�m saltar� aos olhos que tamanho e "poder" (hard power) s�o atributos que ganham ainda maior import�ncia. Nesse quadro, merece destaque a presen�a da �ndia que, mantidas as atuais din�micas demogr�ficas, deve ultrapassar a China como pa�s mais populoso do mundo na pr�xima quinzena de anos.
Como j� vimos nesta coluna, a �ndia est� se beneficiando em grande propor��o da "mudan�a de DNA" da economia chinesa. Os indianos t�m o territ�rio, a classe gerencial e a m�o-de-obra abundante e de baixo custo para que os chineses possam terceirizar sua produ��o de bens de menor valor agregado. N�o � nenhuma coincid�ncia que neste 2016 a �ndia, pelo segundo ano consecutivo, ver� sua economia crescer em percentual superior ao ritmo chin�s.
Resultado disso ser� que a �ndia ajudar� a deslocar fortemente a curva de demanda global por commodities agr�colas —j� que seu povo, com rendas crescentes, aumentar� sobremaneira o consumo di�rio de calorias. O mesmo dever� ser observado na demanda por commodities minerais, na medida em que a �ndia ter� de realizar pesados investimentos em sua infraestrutura. Os efeitos colaterais do crescimento de �ndia e China se sentir�o em todo o Sudeste Asi�tico, o que aumentar� ainda mais o peso relativo da regi�o na economia global.
Mas talvez o membro mais inesperado desse quarteto Cirus seja a R�ssia. De decepcionante performance econ�mica desde o fim da URSS e desalento com a possibilidade do pa�s converter-se numa democracia "� ocidental", a R�ssia tamb�m se inibe por uma tend�ncia demogr�fica que prev� para o pa�s uma popula��o em 2050 de apenas 110 milh�es de pessoas —um dram�tico decl�nio dos atuais 140 milh�es de habitantes. Pode-se ver a R�ssia, por muitos prismas, como um ator em decad�ncia.
Ainda assim, � for�oso reconhecer que por seu acervo militar-estrat�gico, a abund�ncia de recursos naturais e a predile��o por desempenhar um papel de relevo em sua vizinhan�a imediata e mesmo em outras regi�es do globo, a R�ssia tem seu espa�o garantido na elite da nova ordem.
Alie-se a isso o enfraquecimento relativo da Uni�o Europeia e da Otan, a tend�ncia de voto das elei��es francesas de mar�o de 2017, o namoro Trump-Putin e a pr�pria escolha de Rex Tillerson, de rela��es pessoais com o titular do Kremlin, como novo secret�rio de Estado dos EUA, e o novo cen�rio internacional projeta papel de relevo para a R�ssia.
Tor�o para que a ideia de Cirus n�o se confirme. Para tanto, seria necess�rio a Uni�o Europeia voltar a trilhar o caminho do refor�o integracionista. Fundamental tamb�m que os EUA n�o "abandonassem" o mundo, sobretudo a �sia-Pac�fico.
O Jap�o teria de jogar papel mais central. A Am�rica Latina haveria de desempenhar lideran�a no crescimento econ�mico a que parece pouco propensa. E, claro, o multilateralismo deveria ganhar um inesperado f�lego nessa conjuntura de marcados individualismos nacionais.
Na aus�ncia da combina��o desses cen�rios razoavelmente improv�veis, gostemos ou n�o, teremos de nos acostumar � ideia de Cirus como quarteto dominante da cena global.
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