A pandemia não acabou, fato incansavelmente ressaltado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Entretanto, a postura em relação à pandemia está mudando em vários países, apesar da iniquidade na cobertura vacinal e do aumento de casos em alguns países da Ásia e da Europa.
No Brasil, a marca de 660 mil mortos por Covid-19 foi ultrapassada. Enquanto isso, o Ministério da Saúde avalia a possibilidade do fim do estado de emergência e várias cidades flexibilizam o uso de máscaras. Depois de dois anos de pandemia, que ações transformadoras foram implementadas no Brasil a fim de tornar o país mais resiliente a emergências de saúde pública?
Aqui discuto três pontos.
Primeiro, mudanças decorrentes da Covid-19 que deveriam ficar como legado para a sociedade, tais como a dedicação da imprensa na comunicação de números e fatos reais; o engajamento de cientistas com o público para trazer a verdade com linguagem simples; a criação de parcerias entre cientistas de diferentes áreas que voluntariamente se dedicaram a mostrar iniquidades e a buscar soluções; a liderança dos conselhos nacionais de secretários estaduais e municipais de saúde; a coalizão de governadores e prefeitos em algumas regiões; a possibilidade do trabalho remoto, que, ainda que não seja algo que beneficie todos os grupos ocupacionais, abre a possibilidade de formas mais flexíveis de trabalho, desde que devidamente reguladas; doações e ações da sociedade civil que ajudaram os mais vulneráveis e impulsionaram a pesquisa e a capacidade hospitalar; e o reconhecimento da importância do SUS (Sistema Único de Saúde) por parte da sociedade durante a vacinação contra a Covid-19.
Segundo, o legado desumano que não pode ser esquecido e precisa ser condenado. A total falta de empatia, a banalização da desgraça e a disseminação de inverdades ao longo da pandemia marcam a ação de uma liderança que é responsável por parte das mais de 660 mil mortes por Covid-19.
O relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 expôs os detalhes e as consequências desse legado. Se há dignidade na Procuradoria-Geral da República (PGR), os indiciados hão de ser julgados.
Terceiro, mudanças que já deveriam ter acontecido, como parte de um processo de aprendizado, a fim de dar suporte às medidas de flexibilização. Semana passada, a OMS divulgou uma estratégia de vigilância genômica global para guiar esforços de países em implementar ou expandir redes de vigilância. A Rede Genômica Fiocruz tem um papel importantíssimo, mas não foi desenhada para detectar de forma rápida a circulação de novos patógenos no país.
Expandir essa rede por meio da colaboração entre os Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacen) de cada estado e redes de laboratórios privados seria fundamental para melhorar a resposta a futuras emergências.
Em meados de março, o presidente dos Estados Unidos lançou um plano para melhoria da ventilação de prédios, especialmente de escolas. O plano reconhece que, para convivermos com o Sars-CoV-2, há que se mitigar as condições que facilitaram sua propagação. No Brasil, não há nenhuma ação que se assemelhe a isso.
Além disso, ainda não há programas de assistência a órfãos e a quem sofre os efeitos da Covid longa. Tampouco há iniciativas concretas de redução de desigualdades visando mitigar problemas estruturais que tornam áreas e grupos populacionais mais vulneráveis à transmissão de Covid-19 e de outras doenças.
Se errar é humano, aprender com os erros é sábio. O aprendizado dos dois últimos anos demanda mudanças urgentes. Sem mudanças, o oba-oba do fim da pandemia será como pintar uma parede mofada por infiltração. Vai ficar "bom" por um tempo curto, até que o mofo volta. Que ninguém se iluda com a parede pintada sem a troca do cano.
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