Dois livros extraordinários sobre o mundo natural, muito diferentes e ainda assim irmanados, chegam às mãos de brasileiros. Quase três s��culos separam os projetos iluministas que lhes deram origem, mas seu encontro neste escuro 2021 emite uma centelha que convém atiçar.
O primeiro é “História Natural”, de Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788). Extratos dos 36 volumes publicados a partir de 1749 foram reunidos nas 758 páginas desta edição primorosa da Unesp, organizada e traduzida por Isabel Coelho Fragelli, Pedro Paulo Pimenta e Ana Carolina Soliva Soria.
O título completo é “História Natural, Geral e Particular, com a Descrição do Gabinete do Rei”. Começou como catálogo da coleção de Luís 15 e se tornou uma enciclopédia do conhecimento até então acumulado sobre a natureza.
Lê-se como uma declaração de amor ao trabalho metódico do naturalista: “É preciso uma espécie de força, própria do gênio, e certa coragem de espírito para contemplar, sem se deixar levar pelo espanto, a inumerável multidão de produções da Natureza, e ser capaz de compreendê-las e compará-las”.
“Pode-se dizer que o amor pelo estudo da Natureza pressupõe no espírito duas qualidades que parecem opostas: as grandes visões de um gênio ardente, que tudo abarca com um só golpe de vista, e a atenção minuciosa de um instinto laborioso, que se detém em um único ponto.”
O período ideal para aguçar tal paixão vem com a mocidade. “Os jovens (...) devem ser guiados e aconselhados; deve-se mesmo encorajá-los com o que houver de mais instigante na ciência, fazendo que notem as coisas mais singulares sem, no entanto, explicá-las em detalhe”, receita o conde.
“Nessa idade, o mistério excita a curiosidade, enquanto na idade adulta inspira apenas o desgosto.”
Esse desgosto constitui a parte essencial da personalidade carcomida e funérea de Jair Bolsonaro. De outra maneira, como entender seu desprezo devastador pela educação, pela ciência, pela natureza?
O presidente deplora povos indígenas, mas poderia aprender sobre sabedoria e autonomia com os parentes de Davi Kopenawa. Deveria começar folheando o segundo livro extraordinário desta coluna: “Puu Naki Thëã Oni – O Conhecimento Yanomami sobre Abelhas”.
É o novo volume da série Saberes da Floresta, da Hutukara Associação Yanomami e do Instituto Socioambiental. Neste caso, a reunião do conhecimento de anciãos e xamãs com a pesquisa metódica de jovens naturalistas indígenas sobre a vida de 32 espécies desses insetos —tão úteis e ameaçados alhures— na região de Toototobi (RR).
Moças e moços com os pés no século 21, não no marco temporal à moda de 1964 em que se estiola Bolsonaro. Ameaçados de genocídio pelo assédio de garimpeiros tidos como heróis pelo presidente, constroem um pós-naturalismo que concilia o gênio ardente do conhecimento xamânico com o método apaixonante de Buffon.
Algumas palavras mais para apagar por instantes da memória o governo infame que nos envergonha. Fiquemos com as páginas dedicadas ao cão por Buffon, tão comoventes ao captar uma dignidade que suplanta a de certos humanos:
“... sua afeição é mais fiel e mais constante que a dele; é desprovido de ambição, interesse, sede de vingança, e não tem medo, exceto pelo de desagradar; é feito de zelo, ardor e obediência; mais sensível à lembrança de recompensas que à de castigos, não se abate com maus-tratos, suporta-os, esquece-os, ou, se se lembra deles, é para se tornar mais fiel”.
Quanto mais conheço de Bolsonaro, mais eu gosto de Tita, Coca, Lola, Pumba e Rufus.
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