� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Os escravos contempor�neos criados pela tecnologia
Em 1769, uma novidade impressionou a Europa. O "Turco Mec�nico", aut�mato inventado pelo bar�o Wolfgang von Kempelen, jogava xadrez como poucos. Em v�rios desafios p�blicos, aquela que parecia ser uma forma de intelig�ncia artificial derrotou v�rios enxadristas e celebridades da �poca, entre elas Napole�o Bonaparte. O mist�rio s� foi solucionado d�cadas mais tarde, quando se descobriu que a m�quina escondia em seu interior um homenzinho com grande talento, que operava as pe�as de xadrez por meio de alavancas.
A brincadeira de mau gosto deveria ter sido esquecida com o tempo, lembrada somente por historiadores como uma das formas de selvageria praticadas em uma �poca que a escravid�o era considerada leg�tima. Mas os grandes magnatas do Vale do Sil�cio n�o parecem estar preocupados com essas delicadezas de direitos humanos. Em 2005 a Amazon tornou p�blico seu servi�o de "intelig�ncia artificial artificial", em que trabalhadores do mundo todo podem realizar pequenas tarefas que simulem algoritmos. E deu a ele o mesmo nome do boneco turco, deixando transparecer que sua preocupa��o com os direitos de seus trabalhadores n�o deveria ser muito diferente da que se tinha com o pobre coitado espremido em um pequeno arm�rio.
Hoje apenas o servi�o da Amazon agrega mais de 100 mil "colaboradores", que n�o precisam de maior qualifica��o al�m de ter um endere�o de e-mail v�lido. Suas tarefas podem ser acessadas de qualquer browser, n�o levam mais do que uns cinco minutos para serem completadas e s�o pagas assim que forem aprovadas. Como o "Mechanical Turk", outros mercados de computa��o humana com nomes de start-up brotaram recentemente. CastingWords, Samasource, ChaCha, LiveOps e tantos outros tentam criar seus fantasmas na m�quina enquanto ela n�o se mostra capaz de fazer aquilo que � banal para o c�rebro humano.
� ineg�vel que a capacidade computacional cresceu exponencialmente nos �ltimos anos. Mas, apesar de serem imbat�veis em calcular, armazenar, comparar e recuperar grandes volumes de dados, computadores ainda s�o prec�rios para realizar fun��es t�o b�sicas como o reconhecimento de objetos em fotografias.
Essa forma h�brida de computa��o hoje est� vis�vel em v�rios lugares. Em qualquer busca por informa��es de contato de um estabelecimento comercial, por exemplo, � bem prov�vel que o endere�o, telefone, hor�rio de funcionamento e website apare�am em destaque, organizados para f�cil identifica��o. Boa parte desses dados foi coletada cuidadosamente por centenas de trabalhadores, que acessaram os sites, identificaram dados registrados das formas mais aleat�rias e os deixaram em ordem.
Nos grandes servi�os de com�rcio eletr�nico, a busca por um item especial meio a centenas de milhares de objetos � precisa porque a base de dados foi limpa, classificada e arrumada pelo mesmo tipo de m�os e c�rebros invis�veis. O usu�rio, que procura na m�quina uma resposta infal�vel, muitas vezes a recebe de outro usu�rio, travestido de m�quina. � o simulacro do simulacro do simulacro.
Os computadores artificiais fazem de tudo: moderam conte�do de coment�rios, transcrevem �udio e v�deo, promovem determinadas marcas, curtem e compartilham conte�do, votam, coletam e classificam dados, identificam pessoas e objetos em fotografias, analisam o sentimento de consumidores com rela��o a marcas, censuram imagens pornogr�ficas, interpretam caligrafias, removem duplicatas, respondem a perguntas por aplicativos de mensagem instant�nea, identificam prefer�ncias por marcas e modelos e at� respondem a pesquisas de campo de estudos acad�micos.
Ainda levar� umas tr�s d�cadas para que computadores possam superar a capacidade humana nessas tarefas que, apesar de aparentemente simples, dependem de uma capacidade de reconhecimento de padr�es e uma experi�ncia cultural muito grande. At� l�, mercen�rios intelectuais poder�o vender sua capacidade cerebral para que os servi�os que sustentam a Internet funcionem adequadamente.
Em uma pantomima de intelig�ncia de m�quina, gente real d� a impress�o que um computador � t�o inteligente a ponto de ser capaz de simular o comportamento de gente real. O sistema funciona t�o bem que alguns aplicativos de "namoradas virtuais" asi�ticos optaram por substituir os algoritmos de conversa autom�tica por gente que realizasse a mesma fun��o.
A ideia da Intelig�ncia artificial artificial � quase t�o brilhante quanto � perversa. O ciborgue virtual, misto de sistema operacional e rede social, conecta empresas e trabalhadores para a realiza��o de microtarefas, a pre�os que costumam variar entre US$ 0,01 e US$ 5. Descontada a taxa de administra��o, colaboradores que possuam contas banc�rias nos EUA recebem dep�sitos, enquanto o resto � pago em vale-presentes.
As demandas, quebradas pelo sistema em microtarefas, s�o parecidas com as antigas linhas de montagens de f�bricas no in�cio da Revolu��o Industrial. A remunera��o, os direitos dos oper�rios e o tamanho das jornadas de trabalho n�o s�o t�o diferentes. � raro quem consiga, mesmo com bastante dedica��o, receber mais do que US$ 2 por hora. � mais do que um sal�rio m�nimo, mas descontados os custos de rede, equipamento e energia, d� mais ou menos na mesma.
S� que n�o. Sem registro nem benef�cios, o pobre oper�rio � largado � sua pr�pria sorte. Como n�o h� controle, transpar�ncia ou estabilidade, � muito dif�cil evitar o trabalho infantil ou jornadas excessivas. Como acontece com os motoristas do Uber, cada profissional � considerado aut�nomo e respons�vel por seu pr�prio recolhimento de tributos. Para a empresa que o contrata, no entanto, o risco � praticamente zero. N�o s�o raros os casos de calotes e fraudes promovidos por clientes inescrupulosos que rejeitam o trabalho feito e se recusam a pag�-lo, sem grandes justificativas.
O mercado de microtrabalho � uma ind�stria grande e crescente. Estima-se que movimente quase US$ 500 milh�es anuais, o que � uma ninharia quando comparado ao "outsourcing" de trabalhos para pa�ses pobres, que movimenta cerca de mil vezes essa quantia.
Entre seus clientes est�o v�rias empresas pequenas e start-ups, mas o dinheiro de verdade � movimentado por enormes multinacionais. Suas tarefas, anonimizadas e fatiadas, dificilmente podem ser identificadas. Mesmo que n�o fossem t�o baratas, a economia com tributos, despesas de treinamento, vales e cuidados m�dicos j� tornaria o esfor�o bem lucrativo.
Em um papel que mistura "Matrix" com "Tempos Modernos", as baterias humanas tendem a se tornar cada vez mais comuns. Camufladas sob o gabinete da m�quina, suas identidades desaparecem. Praticamente ningu�m tem acesso �s demandas e sofrimentos desses pobres coitados, espalhados pelos grot�es do mundo, sentados � frente de seus computadores, presos a um trabalho hipn�tico, na tentativa de garantir a sobreviv�ncia da fam�lia com a dedica��o de jogadores de videogame.
Invis�veis, as linhas de montagem virtuais podem ser facilmente ignoradas. E com elas, boa parte das conquistas sociais obtidas. Com medo de perder seu magro sal�rio e incapaz de saber quantos outros enfrentam a mesma situa��o, o escravo contempor�neo n�o protesta. Ele sabe que a estabilidade de emprego � coisa do passado, e luta para que a situa��o n�o piore, colaborando com a ilus�o de que a internet, gratuita, gera riquezas por m�gica.
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