� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Hatebook
S�o fatos ineg�veis que a intoler�ncia vem crescendo nos �ltimos meses e que sua principal arena s�o as redes sociais. Justo elas, que ao surgir foram consideradas um avan�o democr�tico.
Plataformas se defendem alegando bloquear conte�dos ofensivos a religi�es, etnias, nacionalidades, g�neros, doen�as ou prefer�ncias. O argumento, gen�rico, tem efeito discut�vel. Ele pode at� funcionar em casos t�o radicais que n�o conseguem ser interpretados como humor, par�dia, letra de m�sica ou outras formas socialmente aceitas de preconceito, mas dificilmente acabar� com a polariza��o.
F�runs digitais, a princ�pio, s�o t�o respons�veis pelas opini�es de seus integrantes quanto um dono de bar o seria pelo teor das conversas de seus fregueses. Como donos de bares, seus administradores podem at� convidar os mais exaltados a se retirar, tolerando o resto.
O problema � que na rede a conversa informal, que deveria ser vol�til e restrita a pequenos grupos, � registrada, amplificada e redistribu�da. Rumores e afirma��es fora de contexto s�o levados a s�rio e opini�es contr�rias tendem a ser suprimidas e filtradas.
Ativistas de todos os lados gostam de acusar a manipula��o dos fatos por uma m�dia "vendida", mas parecem se esquecer de que desde o surgimento da Internet as m�dias de massa perderam boa parte de seu alcance e influ�ncia. Hoje boa parte da informa��o consumida vem de redes sociais, que n�o costumam ter qualquer compromisso com a neutralidade, com a verifica��o de origem dos fatos ou mesmo com sua veracidade.
A distor��o da not�cia, que na grande m�dia tende a ser limitada e consiste, em sua maioria, na omiss�o de fatos e opini�es, � nas redes sociais abertamente intencional, destacada e distribu�da.
Se os grandes servi�os de comunidades online estivessem realmente empenhados em garantir a multiplicidade de vis�es de mundo, seus algoritmos buscariam apresentar o diferente, n�o o semelhante. Mas isso implicaria em uma total invers�o do que se conhece hoje por rede social.
Facebook e Google n�o s�o servi�os noticiosos nem educativos. Acima de tudo, n�o s�o gratuitos. Seu faturamento vem, como na TV, de an�ncios. Para se sustentar, eles dependem de audi�ncia e precisam garantir a perman�ncia de seus p�blicos. Sua f�rmula para conseguir tanta gente conectada por tanto tempo � compilar e analisar prefer�ncias individuais para filtrar a Internet em uma narrativa previs�vel e uniforme.
O resultado � coerente, agrad�vel e desprovido de conflitos como uma sala de estar. Mas para garantir tal assepsia, a realidade � comprometida e retalhada, deixando cada usu�rio isolado em sua pr�pria bolha cultural e ideol�gica. Quanto mais a rede "social" � usada, mais seus usu�rios ficam presos a conte�dos que os isolam e refor�am seus pontos de vista, tornando-os ironicamente mais antissociais.
Essa "ciberbalcaniza��o", que j� seria ruim por seu efeito alienante, � ainda mais grave quando se considera a tend�ncia humana a buscar, interpretar, favorecer e recordar informa��es que confirmem suas cren�as ou hip�teses, atribuindo valor consideravelmente menor a possibilidades alternativas. Mesmo que a informa��o fosse neutra, sua interpreta��o seria enviesada.
Quando ela � tendenciosa, � natural que gere leituras radicais.
O apoio da comunidade torna o problema ainda mais grave. Ele costuma bloquear qualquer ideia, tema ou informa��o que conteste o estado das coisas. Agindo como c�mara de eco, ele contribui para o sentimento excessivo de autoconfian�a, t�pico de torcidas organizadas e prociss�es de fan�ticos, agarrando-se a cren�as mesmo em face de evid�ncias contr�rias.
Quando o grupo � coeso e barulhento, discordar � tarefa para gente muito segura e corajosa. Ou insana.
O grande problema da "voz do povo" � estar sujeita �s din�micas de comportamento coletivo. Poderosas, essas din�micas foram estudadas por pesadores do calibre de Kierkegaard, Nietzsche, Freud e Jung. Em comum, todos afirmam que elas representam for�as irracionais e poderosas.
Universais, alguns de seus comportamentos s�o estudados at� em intera��es sociais n�o-humanas, como em col�nias de insetos e algumas �reas da intelig�ncia artificial.
A ideia de um comportamento de multid�es, proposta pelo psic�logo social Gustave Le Bon no final do s�culo 19, continua v�lida em uma civiliza��o com mais acesso � informa��o do que havia h� um s�culo e meio.
A rede mundial de conte�do n�o impediu que o mundo continuasse dividido em categorias tribais, em que "n�s" parecemos estar em guerra cont�nua contra "eles". Em alguns momentos ela parece refor�ar essa divis�o.
Ao doutrinar cada usu�rio com suas pr�prias ideias, o Facebook cria uma ditadura ideol�gica invis�vel. Baseada em autopropaganda, ela explora vieses e heur�sticas, refor�a preconceitos e estimula a cria��o de associa��es ilus�rias entre os acontecimentos.
Sob sua influ�ncia, at� fatos claramente neutros ou contr�rios �s cren�as acabam sendo interpretados para favorec�-las. Qualquer coment�rio que oponha-se �s ideias preestabelecidas tem a sua import�ncia diminu�da e seu autor desqualificado.
A polariza��o tende, infelizmente, a crescer. O animal social tem um desejo natural de pertencer e ser aceito. Mesmo quem n�o esteja totalmente comprometido com determinada causa pode acabar, por comodidade, a segui-la. Principalmente se n�o tiver seguran�a ou conhecimento suficiente para opor-se a ela. Como se diz na ind�stria, ningu�m � demitido por comprar IBM. Ou Microsoft. Ou um iPhone.
Muitas atitudes vergonhosas s�o mais o resultado de rea��es autom�ticas do que de inten��es escusas. At� que surja o momento que as redes promovam a diversidade, � fundamental buscar ativamente a maior diversidade de pontos de vista poss�vel e levar, sempre que poss�vel, boa parte delas em conta.
Mais do que nunca � fundamental fazer a li��o de casa antes de tomar uma posi��o. Qualquer posi��o.
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