� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Minecraft n�o � videogame
Ou Facebook �. Enquanto a rede social se caracteriza pela competi��o entre perfis e memes, o universo de cubos marrons, verdes e cinzas refor�a a constru��o e colabora��o. Enquanto a rede azul e suas filiais estimulam o usu�rio a comparar a vida besta que leva com o cotidiano maquiado de seus "amigos", o bloco de constru��o digital cria mundos colaborativos.
Com mais de 22 milh�es de downloads, "Minecraft" � tecnicamente um dos jogos para computador mais vendidos de todos os tempos. A popularidade dos v�deos e f�runs dedicados a ele tamb�m o qualifica como rede social. Mas � a dedica��o de seus usu�rios a construir estruturas que o torna �nico.
Sua principal diferen�a para jogos tradicionais como "Counter Strike" ou "FIFA" � que a competi��o � muito menos importante do que a cria��o. H� batalhas e conquistas de recursos, mas elas s�o secund�rias. H� quem considere o "Minecraft" o aplicativo de CAD mais popular de todos os tempos, j� que cada usu�rio �, de certa forma, um construtor.
Essa "constru��o" n�o tem objetivo definido. Ao contr�rio de aeromodelos, n�o h� certo ou errado. Diferentemente de jogos de simula��o como "The Sims", n�o h� pr�dios, hospitais ou estradas prontas. Todas as estruturas precisam ser criadas a partir do nada. Da mesma forma que nos blocos de Lego, existem diagramas e modelos. Mas a verdadeira gra�a est� na sensa��o de que tudo pode ser feito por ali.
Com tempo e dedica��o, crian�as fazem hospitais em que doentes flutuam, vulc�es que cospem vacas ou casas invertidas. Programadores desenvolvem rob�s que automatizam estruturas e criam modifica��es nas possibilidades do jogo. Nerds em geral criam sistemas complexos, jogos e at� circuitos el�tricos por l�. Em 2014, uma ag�ncia governamental da Dinamarca –terra do Lego– criou uma r�plica fiel do pa�s em escala real no mundo de fantasia.
O desafio simples da constru��o promove ideias criativas, colabora��o e compartilhamento. Como em Lego, boa parte das estruturas criadas � simples. Mas de vez em quando algu�m cria o inimagin�vel.
No "Minecraft", a narrativa � muito menos importante do que o universo. Diferentemente de outros jogos, n�o h� objetivo nem final. O caminho � o fim. O melhor termo para classific�-lo � "metaverso", uma esp�cie de amplia��o da vida pela reuni�o de mundos virtuais, redes sociais e realidade aumentada.
O nome, criado pelo escritor Neal Stephenson, foi popularizado (e quase destru�do) pela rede "Second Life" em 2003. A ideia n�o era ruim, mas a lerdeza dos servidores e apar�ncia das personagens acabou com o produto e quase matou o conceito.
A popularidade do ambiente aberto, pouco competitivo e sem objetivos claros, no entanto, veio para ficar. No "Minecraft", ela ganhou popularidade entre as crian�as enquanto diminuiu a resist�ncia de pais. Nas escolas, alguns professores perceberam ser poss�vel canalizar essa paix�o para a constru��o de projetos que viabilizassem conte�dos did�ticos.
Ao explorar o mundo em vez de receber, passivo, o conte�do das salas de aula, livros e sistemas de ensino, o aluno poderia criar uma rela��o mais ativa com o aprendizado. Nesse ambiente de simula��o, como no mundo real, n�o h� respostas totalmente certas. Pelo contr�rio, v�rias estrat�gias podem levar ao mesmo resultado. � construtivismo e construcionismo na pr�tica.
J� faz algum tempo que estudos cient�ficos mostram as possibilidades did�ticas dos videogames. A maioria, no entanto, ainda se concentra nas habilidades t�cnicas. Defende-se que games, praticados com modera��o, podem levar a altera��es da plasticidade cerebral, aumento da percep��o espacial, melhoria na capacidade de planejamento estrat�gico e desenvolvimento de habilidades motoras.
Os experimentos com o "Minecraft" mostram que esse progresso ir muito al�m. Como seu universo pode ser restrito, � poss�vel criar por ali experi�ncias controladas e seguras, ao mesmo tempo em que se desenvolvem conceitos essenciais para o progresso da ci�ncia, como a valida��o de hip�teses e a consulta entre pares. S�o valores que, como a cidadania digital e a privacidade, eram at� recentemente considerados avan�ados demais para o alcance de crian�as pequenas.
"Minecraft" tamb�m pode ser usado para ensinar a programar computadores, habilidade essencial em um mundo cada vez mais dominado por estruturas digitais. C�digo, como j� foi defendido nesta coluna, pode ser considerado tanto um g�nero liter�rio como uma esp�cie de l�ngua universal. Iniciativas de empresas como LearnToMod ensinam seus usu�rios a modificar partes do "Minecraft" atrav�s de Blockly, uma linguagem de programa��o simples, pr�xima do Javascript. Acess�veis para crian�as desde os 8 anos de idade, essas t�cnicas podem ensinar conceitos complexos de programa��o como uma forma irresist�vel de dar "poderes m�gicos" aos personagens.
A apropria��o educacional de games e metaversos ainda � prim�ria, desenvolvida voluntariamente e sem algo que possa ser chamado de m�todo. A maioria das aplica��es ainda est� nos laborat�rios de tecnologia, mas nada impede que avancem para outras disciplinas. Como Lego, a educa��o com "Minecraft" ainda � uma solu��o � procura de um problema. O grande desafio est� na capacita��o de professores para esse novo horizonte de alunos-construtores.
Da mesma forma que mestres em RPGs, novos professores poder�o criar o contexto, desenvolver as condi��es que iniciam a jornada e estimular cada participante a usar seu conhecimento e habilidade para resolver desafios dentro de suas capacidades. Aulas assim podem ser envolventes, construtivas e muito diferentes dos enlatados t�o desanimadores para professores e alunos. Com a ajuda de tecnologias como Hololens e impressoras 3D, os blocos digitais podem se integrar facilmente ao mundo f�sico, ampliando a experi�ncia did�tica para espa�os nunca vistos.
Como em toda nova tecnologia, a nova pr�tica n�o � isenta de riscos. Alguns temem que, sem a devida integra��o social, a intera��o com o mundo pelas lentes do "Minecraft" pode criar uma esp�cie de isolamento doentio, mostrado por document�rios sombrios como "Login2Life" ou "Second Skin".
� um risco. Mas, antes que isso se torne uma amea�a, o risco maior est� na filosofia da "Microsoft", atual propriet�ria do metaverso. Por mais que a empresa tenha anunciado que lan�ar� sua vers�o educacional, ela precisar� torn�-la compat�vel com o que j� foi constru�do em suas vers�es antigas, caso contr�rio talvez n�o justifique o esfor�o de reconstru�-las.
Blocos de Lego produzidos em 1958, vale lembrar, encaixam-se perfeitamente nas pe�as contempor�neas, da mesma forma que pe�as de crian�as podem ser totalmente integradas nos conjuntos de adultos. � uma bela li��o para uma ind�stria que tanto se apressa em tornar seus brinquedos obsoletos.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade