� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
A vaidade das cartas abertas
No livro "Player One", de Douglas Coupland, um pastor que abandonou a igreja se queixava de haver pouqu�ssima originalidade nos pecados. Depois de d�cadas a ouvir os horrores contados por seus fi�is, sua rea��o era uma mistura de desprezo e t�dio.
O fil�sofo cat�lico S�o Tom�s de Aquino considerava a vaidade, s�timo dos "pecados capitais", aberra��o t�o gigantesca e onipresente a ponto de merecer aten��o especial. Para ele n�o fazia sentido a mania que tantos membros da mesma esp�cie e sociedade tinham de se sentirem superiores.
Na �poca das p�ginas pessoais e biografias recontadas, nunca se esfor�aram tanto para mostrar que, mesmo em um mundo de iguais, uns podem se dar ao luxo de ser mais iguais.
O estilo de vida que valoriza celebridades como o MC Bin Laden, cuja �nica raz�o para a notoriedade � a capacidade de chocar, machucar, ofender ou polemizar sem proposta ou forma��o, n�o � diferente do v�cio, espalhado pelo mundo, de levar vantagem em tudo.
Mistura de sala de espelhos e c�mara obscura, a m�dia social � um dos jogos mais perversos j� inventados: ela � fruto da competitividade doentia que corr�i a sociedade americana, especialista em identificar os erros dos outros enquanto ignora os pr�prios, empenhada em concursos de sofrimento e trag�dia.
J� faz tempo que a vaidade eletr�nica gera pandemias de ansiedade e depress�o. Ao estimular a concorr�ncia entre dores e gl�rias, suas linhas do tempo s�o uma exposi��o constante da exce��o cotidiana. Cada vit�ria ou derrota � logo contestada por "amigos", que n�o consideram nada ruim o suficiente e nenhuma hist�ria t�o gloriosa quanto a autobiografia.
Essa vida social antissocial � uma forma ineg�vel de auto sabotagem. Se as v�timas desse processo fossem apenas os participantes ativos, o problema j� seria grave mas poderia estar sob controle. H�, no entanto, fortes ind�cios de que ela vai muito al�m. S�o comuns hist�rias tristes como a do filhote de Golfinho morto na praia Argentina em nome de uma "selfie", o banimento da pobre m�e que desabafou na rede social e o comportamento infame do boteco da Vila Madalena que se recusou a ouvir as queixas de ass�dio contra suas clientes e ainda divulgou uma vers�o editada do v�deo das c�maras de seguran�a para expor as v�timas a julgamentos (perd�o, execu��es) morais p�blicas. Elas mostram que h� pouqu�ssimas considera��es morais na competi��o selvagem da m�dia social.
Foi nesse contexto que o termo "vaidade" apareceu. Um gringo qualquer, daqueles que brotam todo ver�o cheios de arrog�ncia e opini�es formadas sobre tudo, se meteu a criticar o brasileiro.
O diagn�stico tem pontos interessantes. N�o tem nada de in�dito e pouqu�ssimo de correto. � texto de Facebook, com a profundidade que lhe � caracter�stica. Como � muito mais f�cil de ler do que Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro ou Roberto DaMatta, vale por seu poder de alcance. Mesmo que seu conte�do n�o merecesse constar da sinopse da introdu��o de um resumo de um coment�rio de uma nota de rodap� dos autores acima.
Sua an�lise quer audi�ncia, n�o reflex�o. Tanto que repete a f�rmula que ele mesmo praticou ao criticar os americanos. Ela n�o tem a preocupa��o moral de brasilianistas como Richard Morse, Albert Fishlow, Thomas Skidmore ou, como revelou uma edi��o da "Piau�", o quase desconhecido Nathaniel Leff. Muito pelo contr�rio. Como quase tudo, o texto exemplifica a gigantesca vaidade que assola a rede. Se conseguisse convencer alguns a prestar aten��o no problema, teria prestado um belo servi�o. Mas isso n�o acontecer�.
Vaidade � um problema s�rio. E generalizado. Ela corrompe a It�lia, destr�i a R�ssia, desequilibra a China e cria uma bela confus�o no Oriente M�dio. Ela segura ditadores no poder ao redor do mundo, estimula desigualdades e refor�a diferen�as. Nem toda filosofia da Gr�cia conseguiu salv�-la da corrup��o causada por vaidade, que tamb�m corr�i a Turquia e pode transformar Hungria e �ustria em novos pa�ses nazistas.
Nos EUA, ela transformou a �tica Protestante em um sistema de competitividade extrema, que divide sociedades entre "vencedores" e "perdedores", cria mendigos e lhes nega as devidas esmolas. Ela cria Donalds e Bernies, Clintons e Bushes. Cada um deles com uma proposta de realidade paralela que dificilmente tornar� o mundo melhor.
� f�cil identificar o erro no outro, o rasgado sempre riu do esfarrapado. Quem compartilhou as palavras da carta, tomando-as como verdade universal, precisa ter o cuidado de n�o se comportar como quem se apressou em julgar a m�e ou as v�timas do ass�dio no boteco, acreditando, por vaidade, que � diferente. � preciso muita arrog�ncia para acreditar-se superior � rede, ao pa�s, � esp�cie.
A ideia de "mudar o povo", proposta pelo gringo, � preconceituosa, fascista e condescendente. E repete o discurso elitista que divide o povo em vez de criar condi��es para todos. O "jeitinho brasileiro" precisa morrer. O "american way" tamb�m. N�o � f�cil.
Ningu�m � a �nica fonte do problema. Nem da solu��o. Ou seguimos todos juntos ou ningu�m ir� a lugar algum.
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