� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Solid�o em grupo
Em uma �poca em que tanto se fala de privacidade, causa espanto a epidemia de solid�o. Mas nas torres dos apartamentos, nas clausuras das baias, nas esta��es de trabalho e reuni�o das corpora��es de of�cio, nas mesas de parede dos restaurantes, nos cantos escuros das festas, parques e semin�rios, nos banheiros de shopping centers e nas salas de encontro de fam�lias, jovens, velhos e crian�as de todas as idades est�o cada vez mais isolados, debru�ados em seus ret�ngulos luminosos, com fones de ouvido.
Para uns, a solid�o � tempor�ria. Para outros ela veio para ficar. � um paradoxo. Nunca se viveu tanto, nunca tantos foram t�o espremidos em centros urbanos e, ao mesmo tempo, nunca se viveu t�o s�.
Marcada pelo saldo negativo entre o desejo de intera��o social e as rela��es efetivadas, a solid�o � t�o particular quanto intang�vel. Seus efeitos, no entanto, podem ser devastadores: ansiedade, inseguran�a, frustra��o e desamparo desmontam at� o mais resistente dos indiv�duos.
Animal social em sua hist�ria, o ser humano do s�culo 21 est� cada vez mais sujeito � besta invis�vel que, como diz a m�sica do Paulinho da Viola, sorri os seus dentes de chumbo. N�o � exagero acreditar que solid�o mate mais do que ebola. Seus efeitos n�o s�o t�o vis�veis nem contagiosos, mas o saldo final � mais abrangente. V�rios estudos mostram que ela aumenta o risco de c�ncer, doen�as cardiovasculares, dem�ncia, alcoolismo, acidentes e suic�dio. � um problema grave e generalizado, mas pouco se fala a respeito.
Hoje h� menos contato humano, e o pouco que resta � cada vez mais dif�cil e menos significativo. De uma conversa honesta em que se trocam inseguran�as e d�vidas a uma rela��o afetiva de real sinceridade, as oportunidades rareiam.
Na falta de confidentes pessoais, um batalh�o de profissionais � convocado. Psic�logos, terapeutas, psiquiatras, "coaches" e mentores nunca foram t�o requisitados. Quando n�o se tem acesso a eles, ou quando suas orienta��es n�o s�o suficientes, apela-se para a automedica��o, na forma de rem�dios, �lcool, pornografia, videogames ou televis�o, que raramente d�o conta do problema. A ruptura dos la�os sociais, que at� h� pouco n�o passava de um coment�rio nost�lgico, rapidamente se tornou problema de sa�de.
Isso n�o quer dizer que o contato frequente seja obrigat�rio. Todo mundo precisa de um tempo livre, s�, para espairecer. Longe do barulho das massas nas ruas e redes � poss�vel respirar e pensar na vida. A escola existencialista da filosofia defende que a solid�o � a ess�ncia da vida humana.
Cada um nasce s�, vive alegrias e prazeres por conta pr�pria e morre s�. Para eles, as experi�ncias trocadas n�o passam de met�foras de qualidade discut�vel e compreens�o duvidosa. Aceitar essa condi��o � parte fundamental da tarefa humana. Sartre, um de seus expoentes, dizia que a solid�o era essencial para compreender a discrep�ncia entre a busca por sentido na vida e o grande Nada do Universo.
Valorizado por fil�sofos, monges e artistas, o isolamento volunt�rio sempre foi lugar de inspira��o. Na tradi��o de v�rias religi�es, a reclus�o � considerada uma prova��o que leva � sabedoria. Sidarta Gautama se transformou no Buda depois de meditar s�, por um bom tempo. Lao Zi escreveu o Tao Te Ching e depois foi peregrinar sozinho.
O Velho Testamento tem v�rias hist�rias com eremitas no deserto, tidos como s�bios e respeitados por transformar a solid�o em percep��o do mundo. O que os diferencia dos isolados contempor�neos � que sua op��o era volunt�ria. Ou pelo menos planejada, n�o apresentada subitamente como fato da vida.
Ao contr�rio da reflex�o volunt�ria, o isolamento moderno acontece progressivamente, normalmente contra a vontade de suas v�timas, que demoram para reconhecer que est�o s�s. At� porque isso significa admitir que n�o s�o desejados, que s�o insignificantes, e que podem ser ignorados. � preciso muita coragem –ou desespero– para reconhecer a dor de ser s�.
At� porque as mudan�as estruturais em uma sociedade cujo maior valor � o marketing, ao estimularem a competi��o e a exposi��o cont�nuas, refor�am e celebram o individualismo. Ele se manifesta na figura do empreendedor, do cientista louco, do artista incompreendido e de uma s�rie de caub�is e lobos solit�rios, "self made".
N�o h� preparo para uma sociedade t�o cheia de individuais. Nunca houve grupo social como aquele em se vive hoje, que nega o coletivo em nome do individualismo "heroico", em que o que conta � vencer –na guerra, no amor, nos neg�cios, na vida. Nessa f�ria predat�ria os recursos do mundo s�o consumidos e a desigualdade aumenta, destruindo a conex�o que um dia foi a principal caracter�stica humana.
O Facebook, nesse ambiente, � confort�vel. Ele permite a intera��o entre pessoas que pensam parecido, ao mesmo tempo que os poupa de eventuais embara�os. Tudo ali � muito simples: basta curtir, compartilhar ou bloquear. Em um ambiente de competi��o perene, a simplicidade tende a criar uma compuls�o em afirmar as realiza��es pr�prias e a se comparar com o outro o tempo todo.
T�o invulner�vel quanto desonesto, o habitante da rede social � artificial. Suas conex�es podem ser amplas, mas s�o rasas e f�teis. Neste mundo de comunica��o instant�nea e absoluta, todos s�o, em certa inst�ncia, pequenas farsas.
As redes sociais n�o s�o o problema. Elas est�o mais para o sintoma. N�o s�o respons�veis pela solid�o, mas ve�culos potencializadores dos desejos de uma vida antissocial, p�s-social, bruta, competitiva e longa. � preciso reconhec�-los para que os benef�cios da tecnologia n�o sejam destru�dos por seus caprichos.
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