� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
O mundo digital � 'kitsch'
J� faz algum tempo que a ideia publicit�ria de "experi�ncia" sucedeu a concep��o de qualidade nas mat�rias-primas, produtos e servi�os. O consumidor �vido por design quer novos gadgets, jogos, cosm�ticos, viagens e cirurgias est�ticas o tempo todo. Se n�o durarem, paci�ncia.
Para se manterem desejadas e renovadas, as marcas buscam criar novos estilos com uma velocidade inspirada no mundo da moda. Hoje n�o basta mais lan�ar produtos de qualidade t�cnica. � preciso ser "tend�ncia", lan�ar regularmente novas linhas –e apresent�-las como cole��es.
Isso demanda um novo tipo de consumidor. Egoc�ntrico e individualista, ele deve privilegiar a originalidade e o divertimento acima de qualquer justificativa t�cnica, patrimonial ou essencial. Muitos acreditam manifestar, dessa forma, sua independ�ncia. Mas a liberdade � parecida com a de um p�s-adolescente, que mesmo sem as responsabilidades ou as preocupa��es do adulto, demanda ser tratado como tal.
As vontades dos novos reizinhos est�o refletidas em suas atitudes. O antigo ideal de sal�rio e carreira foi substitu�do pelo desejo de se exprimir, criar, fazer coisas estimulantes que a atividade profissional n�o permite. Um n�mero cada vez maior de artistas autointitulados quer exercer uma atividade criativa paralela a seu trabalho, consciente de que a celebridade a atingir por meio dela � muito mais importante e necess�ria para sua autoafirma��o do que qualquer habilidade ou talento que demonstre no conjunto da obra.
A nova ordem cultural em um ambiente de muitas estrelas para pouca plateia � dominada pela l�gica do espet�culo e do excesso, e marcada pela mistura de g�neros e interpreta��es. O conte�do � consumido sob demanda, e no processo transforma seus espectadores em editores. A fabrica��o e a difus�o de imagens � hoje direito e dever de cada um, sujeita � personalidade que pretende ver identificada e admirada pelos outros.
Essa forma de narcisismo de massa tamb�m se reflete na sele��o do que � considerado valioso. O gosto pessoal, manifesta��o de cultura e erudi��o, se tornou mais importante do que qualquer hierarquia, a ponto de toda classifica��o "oficial" estar sujeita a provas e contesta��o de seu m�rito.
Quando todas as opini�es se tornam leg�timas, nenhum crit�rio pode ser considerado definitivo. Sem refer�ncias, cada um escolhe e manifesta a sua opini�o sobre o que considera familiar.
� o ambiente perfeito para a prolifera��o do "kitsch". O termo, derivado do alem�o, surgiu para classificar objetos que imitam a arte mas s�o produzidos em massa, na tentativa de se apropriar de s�mbolos populares. Surgido como uma proposta art�stica f�cil, cheia de sentimentalismo e melodrama, ele n�o tem as complicadas demandas culturais da arte cl�ssica ou contempor�nea.
Enquanto as vanguardas tentam replicar os processos art�sticos, o "kitsch" se limita a copiar seus efeitos. Sua interpreta��o precisa ser f�cil, inequ�voca, imediata. A gratifica��o, instant�nea. O esfor�o intelectual, inexistente. Seu objetivo � o de entreter, decorar sem incomodar. � arte de resultados, cujo prop�sito � t�o evidente quanto pe�as de propaganda ideol�gica.
Ao se apropriar e simplificar as emo��es, boa parte do mundo publicit�rio � "kitsch" na sua tentativa de quantificar, formular e comercializar as rela��es humanas. Em sua realidade simulada, a propaganda usa truques e narrativas para extrair o que h� de espont�neo, empacot�-lo e, como em um suco industrializado, entregar uma vers�o aguada e artificial, pl�stica e insossa.
Cultura da nega��o, o "kitsch" � uma boa forma para que marcas desprovidas de qualquer diferencial criem uma cumplicidade com seus consumidores igualmente med�ocres. Ao diminuir o valor da cultura, elas massageiam seus egos e removem deles a busca por algo melhor. Seu oposto n�o � a sofistica��o, mas a inoc�ncia.
O poder adora o "kitsch". Em guerras e manifesta��es religiosas ele impera. Praticamente n�o h� ditador que n�o o coloque a servi�o do estado, pronto para glorific�-lo e alimentar o culto � personalidade. As imagens de f�bricas produtivas e trabalhadores gordinhos e felizes representam o anti-Portinari idolatrado por qualquer governo, principalmente quando, como fazia Collor e hoje faz Putin, coloca o chef�o acima das for�as da natureza.
No mundo "kitsch" das redes sociais todos s�o reizinhos. E procuram de seus p�blicos uma aceita��o simples, direta, sem maiores questionamentos a que n�o ser�o capazes de responder. N�o h� canal melhor para isso do que a falsifica��o da arte do Instagram, do curr�culo no LinkedIn, da ironia no Twitter, do humor no YouTube, da vida no Facebook. Na forma de meme, o "kitsch" digital � facilmente compreendido, compartilhado e... esquecido.
Arte de conveni�ncia, produzida por linhas de montagem, o "kitsch" � entretenimento em sua ess�ncia. Seu objetivo � fazer rir, n�o se levar a s�rio, evitar a ambi��o cultural. Travestido de par�dia, ele � vista em rel�gios do Mickey, em quadros do Romero Britto, em fotografias de David LaChapelle e neste ano ser� celebrada por Hollywood, em um filme com a Emma Watson.
Pe�as "kitsch" contempor�neas, como as que as precederam, s�o carregadas de clich�s, vers�es gastas e surradas de ideias que, como "Guerra nas Estrelas", um dia foram originais. Mais do que imitar a realidade, elas convidam o espectador a participar, c�mplice, da farsa que perpetuam. Um an�o de jardim ou um pinguim de geladeira dentro de casa s�o manifesta��es descart�veis de autonomia subjetiva, piscadelas com irrever�ncia l�dica.
Enquanto a cultura cl�ssica tinha a ambi��o de formar o indiv�duo e ampliar sua percep��o de mundo, hoje pede-se � cultura pop que "esvazie a cabe�a" de um cotidiano t�o carregado de est�mulos e demandas. O "kitsch", ao piratear a intelig�ncia, cultiva a insensibilidade. Suas pe�as substituem a experi�ncia por charadas f�ceis, t�picas de s�ries de TV, e transformam a vida em uma liquida��o de sensa��es.
� a manifesta��o cultural perfeita para os geeks, d�ndis contempor�neos, imita��es baratas de Jay Gatsby, Rhett Butler ou do conde Dr�cula. Ou, pior, imita��es das imita��es de Patrick Bateman ou Lucius Malfoy, eles d�o maior import�ncia para as g�rias, os objetos e os hobbies de seus pares do que para sua verdadeira ess�ncia. Desesperados para imitar o conhecimento, mas sem a paci�ncia necess�ria para adquiri-lo, eles transformam a falsifica��o est�tica em culto, congratulando-se em sua esperteza ao parecerem t�o f�teis.
Uma das principais fun��es da arte sempre foi a de buscar a transcend�ncia. Quando genu�na, ela estimula seus admiradores a decifr�-la e, no processo, a se tornarem pessoas melhores. O "kitsch", ditatorial ou religioso, editorial ou publicit�rio, n�o ter inten��o maior al�m da pe�a que mostra. � o fast-food da arte, embalado em cores vivas e a�ucarado com replica��es f�ceis. Sua inten��o � promover reflexos infantis enquanto escraviza seus consumidores aos valores do sistema que perpetua.
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