� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Curadores por todo lado
Vivemos uma �poca de hiperinfla��o est�tica. Todos chafurdam diariamente no imenso volume de propostas art�sticas oferecidas pela rede. � preciso escolher as m�sicas a ouvir, as roupas a vestir, o card�pio do restaurante etc.
Nas variadas m�dias sociais, � preciso refletir a respeito de que coment�rios "pega bem" curtir, em quais links se deve clicar, que imagens e fotografias para publicar no perfil, que meme n�o pode ser ignorado. Depois de um longo dia, para descansar a cabe�a, muitos apelam para os v�deos do YouTube ou Netflix, inseguros em saber se, dentre tantas op��es, fizeram a escolha certa.
Mas as alternativas n�o s�o, em sua maioria, t�o diferentes. Pesquisas de mercado e an�lises de grandes bases de dados criam ambientes cada vez mais padronizados, que restringem as op��es apenas �quelas que se provam comercialmente vi�veis.
Muitas das experi�ncias apresentadas como vanguardas acabam sendo mais repetitivas do que revolucion�rias. A web, os aplicativos e os gadgets de hoje, apesar de muito mais potentes do que os produtos e servi�os que lhes deram origem, s�o paradoxalmente uniformes e previs�veis.
Na tentativa de apresentar uma rea��o ao mundo padronizado e � obriga��o de tomar decis�es, muitas empresas buscam proporcionar experi�ncias "originais" em caf�s, galerias, festas, lojas, brech�s, cervejarias ou restaurantes t�picos.
Mas o que � apresentado como "aut�ntico" acaba por ser t�o medido e manufaturado que deixa de s�-lo. Uma barbearia hipster em Ara�atuba bebe das mesmas refer�ncias de uma em Beirute, ambas influenciadas pelo que a revista de decora��o inglesa "descobriu" em Bruxelas.
Para reagir �s ditaduras do estilo, a palavra da moda � uma tal "curadoria". Antigamente reservada a museus e instala��es art�sticas, ela �, hoje, aplicada at� para a escolha de transporte de carga.
A origem do termo � o latim "cura", que quer dizer "se interessar, cuidar". � o mesmo que d� origem � palavra "curiosidade". O curador, a princ�pio, nada mais � do que algu�m extremamente interessado em um tema, capaz de passar todo o tempo que tem dispon�vel a estud�-lo. Ao longo dos anos, o conhecimento acumulado por esse nerd art�stico acaba por qualific�-lo para atribuir valor e julgar o conte�do que avalia.
Precursores dos museus, os "gabinetes de curiosidades" eram cole��es privadas, razoavelmente confusas e empilhadas, raramente catalogadas. N�o havia padroniza��o. Cada organizador imaginava a exposi��o de seus itens � sua pr�pria imagem, normalmente pedante, conservadora e burocr�tica.
Foi preciso um grande esfor�o institucional, refor�ado por doa��es e pilhagem, para que os museus passassem a ter a cara mais impessoal e did�tica de hoje. Seus curadores j� n�o t�m o controle absoluto que tinham sobre suas cole��es, mas ningu�m � doido de mexer com eles.
A internet, gabinete de curiosidades digitais por excel�ncia, disp�e suas c�pias digitais para que acumuladores de todos os tipos as empilhem, classifiquem e atribuam a elas uma esp�cie de ordem, sendo respons�veis tanto pela compila��o quanto pela gera��o de conhecimento.
Esses novos curadores agem como facilitadores, agentes, embaixadores, organizadores, expositores e provocadores do conte�do que agregam, buscando criar sua pr�pria forma de express�o a partir da express�o alheia.
Se nas cidades europeias dos s�culos 16 e 17 os gabinetes de curiosidades eram considerados uma excentricidade praticada pelos poucos que tinham os meios e interesse para tal, hoje esse comportamento � compuls�rio. Na sociedade digital contempor�nea, a ostenta��o n�o se d� mais pelo poder de compra do indiv�duo, mas por sua capacidade de exprimir uma personalidade singular e gostos individuais particulares.
No mundo padronizado das m�dias sociais, a diferencia��o do grupo e o estabelecimento da individualidade parecem ter se transformado em valores essenciais. Cada um morre de medo de ser igual aos outros e busca sua diferencia��o a qualquer custo. Nessas condi��es, o autorretrato deixa de ser uma reflex�o e se transforma em uma forma de marketing de cada indiv�duo, que procura atrav�s de suas selfies, memes e frases de efeito, a aprova��o do grupo.
� uma situa��o amb�gua, para se dizer o m�nimo. O mesmo narcisismo de massa que se v� em tanta exposi��o parece estar sempre acompanhado de uma baix�ssima autoestima e uma gigantesca inseguran�a. Cada declara��o p�blica parece depender da valida��o do outro, e seu autor parece estar preparado para voltar atr�s ou apelar para a autocensura caso desagrade.
A curadoria compuls�ria, autom�tica ou terceirizada, parece criar o contr�rio do que prop�s: um espet�culo sob demanda, em que cada participante leva consigo a responsabilidade pela sele��o, avalia��o e coment�rio. Situa��o agravada pelo fato de as m�dias sociais n�o permitirem a ningu�m que declare sua ignor�ncia a respeito de qualquer assunto.
Como n�o � poss�vel se interessar seriamente a ponto de se tornar especialista em tanta coisa em t�o pouco tempo, sobram bobagens e palpites infundados apresentados como verdades p�treas. Em uma rede cuja maioria do conte�do � publicada por experts autoproclamados, o �nico resultado previs�vel � que todos acabem por saber cada vez menos a respeito do que realmente deveria importar.
Agora que todos parecem capazes de se exprimir e manifestar suas diferen�as, talvez seja o momento adequado para experimentar a manifesta��o de semelhan�as. Uma ideia n�o precisa ser nova ou in�dita para ser boa. Basta que seja cultivada o suficiente.
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