� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Retrospectivas
No mundo aparentemente buc�lico e gigantesco em que se vivia antes de que Google, Facebook, Twitter e cong�neres se tornassem as principais fontes de not�cias, essa �poca de transi��o de ano era marcada pelas retrospectivas.
Na TV, jornais e revistas, rep�rteres empilhavam estat�sticas e linhas do tempo, cuidadosamente analisadas por especialistas de todas as �reas. J� que o pa�s e boa parte do mundo ocidental entravam em uma esp�cie de recesso, pouco de novo havia para ser efetivamente noticiado.
Nada melhor do que aproveitar a efem�ride para preencher p�ginas e minutos com an�lises do per�odo que passou e longas reflex�es, n�o necessariamente ligadas a fatos cotidianos.
Alguns c�ticos acreditavam que tal pauta n�o passava de enrola��o. Nem sempre dava para negar-lhes a raz�o, principalmente quando a reportagem de fim de ano n�o passava de uma compila��o de fatos e dados. Mas at� mesmo nesses casos, o simples relato de fatos acontecidos em um janeiro distante ajudavam a meditar a respeito de tudo o que ocorreu nos �ltimos meses e, no processo, imaginar cen�rios futuros.
Ve�culos mais tradicionais, como a revista "Economist" inglesa, deixavam clara essa inten��o ao trocar a retrospectiva pela perspectiva e publicar sua j� cl�ssica edi��o especial em que faz proje��es para o ano que est� por vir.
A passagem do ano, como um anivers�rio, � mais importante pela reflex�o a fazer a respeito do per�odo que se foi do que pela efem�ride. O planeta continua em seu movimento de transla��o em volta do Sol, indiferente �s criaturas impertinentes que transitam pela sua crosta.
A "virada" do ano � mais uma oportunidade para a mudan�a do que um dia especial, e carrega consigo a �nica vantagem de ter muita gente reunida, disposta a entrar em um ritual de renova��o.
Das extravag�ncias gastron�micas do Natal �s resolu��es de ano novo, passando por shoppings, estradas e hot�is lotados at� que a fatura do cart�o de cr�dito se junte a impostos e mensalidades para trazer de volta a t�o cruel realidade, pouco de relevante acontece nessas duas semanas. Como h� pouco de novo a assimilar, pode ser uma boa �poca para digerir o que foi absorvido sem julgamento.
Boa parte do estresse cotidiano vem da incompreens�o do contexto em que novos fatos, tecnologias, produtos e servi�os aparecem. Em um ambiente cada vez mais integrado, conectado e interdependente, retrospectivas podem ajudar a identificar padr�es e colocar cada novidade em perspectiva.
Elas ajudam a analisar com calma e distanciamento alguns dos eventos mais importantes ocorridos e, no processo, atribuir significado a eles. Ao tirar uma pausa para compreender o contexto em seu cen�rio maior, � poss�vel estabelecer uma opini�o mais fundamentada, reflexiva, menos imediata ou intempestiva a respeito de cada tema.
Enquanto not�cias mostram o mundo exterior, retrospectivas abrem uma janela para o mundo interior. S�o uma forma delicada e secular de se olhar para o passado sem vieses m�sticos ou dogm�ticos, e podem at� ser inspiradoras para se pensar em como tocar a vida em diante.
Neste ano especialmente negativo, a import�ncia de uma retrospectiva � fundamental. Ela ajuda a compreender o mundo apavorante de atentados terroristas, trag�dias clim�ticas, empresas corruptas e mal-administradas e tecnologias in�teis.
E pode ajudar para que 2015 entre para a hist�ria como um grande despertador. Um ano muito mais importante do que poderia sugerir o centen�rio do nascimento de Frank Sinatra, �dith Piaf e at� mesmo da Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein.
No entanto essas retrospectivas vem sendo substitu�das por compila��es in�teis, artificiais, que devolvem para cada usu�rio da rede um pouco mais daquilo que sempre buscou. M�dias sociais, mecanismos de busca e servi�os de com�rcio eletr�nico combatem qualquer tentativa reflex�o usando uma estrat�gia de marketing de recomenda��o, caracterizada por bombardeio de novidades irrefletidas.
Em nome de maior "conveni�ncia" para seus usu�rios, as grandes empresas da rede trocam o espa�o para a an�lise de novos assuntos, que poderiam ser indigestos e gerar questionamentos a respeito do modo de vida, por mais dados e informa��es que refor�am o modo de pensar de seus usu�rios.
Agem assim como verdadeiros opi�ceos informativos contempor�neos, restringindo a vis�o de mundo � medida que aumentam a depend�ncia.
No mundo segundo o Google, o lan�amento do novo epis�dio da franquia "Star Wars" � cerca de 15 vezes mais importante do que a descoberta de �gua em Marte. A Copa do Mundo de Rugby, quase 20 vezes mais importante do que o esc�ndalo de emiss�es da Volkswagen.
A morte do le�o Cecil, maior do que a crise dos refugiados s�rios, do que os debates a respeito do clima e do que o acordo nuclear dos EUA com o Ir�, perdendo por pouco para o desabamento da economia grega.
Com tanta coisa importante a se lembrar, ele traz de volta a "pol�mica" discuss�o a respeito das cores de determinado vestido, e por pouco n�o ressuscita a foto de Kim Kardashian que teria "quebrado a internet".
No Facebook, a retrospectiva consegue ter escopo ainda mais limitado. Ela � restrita a quem, para a empresa, realmente importa: voc�. E mais ningu�m. Ao fazer compila��es de fotos e frases populares que marcaram o ano de seus usu�rios, a rede social os estimula a se comportarem para que sejam aceitos e presentes, n�o questionando o mundo al�m de seus umbigos.
As grandes empresas de conte�do "social" da rede n�o s�o jornais, escolas, institui��es ou partidos pol�ticos. Sua fun��o n�o � informar, educar ou promover a reflex�o, mas entreter. Entretidos, seus usu�rios est�o confort�veis demais para demandar qualquer mudan�a. A data que poderia ser transformadora � transformada em mais um r�veillon na "Ilha de Caras".
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