� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Burro demais para a tecnologia?
Uma lava-lou�as que tenha bot�es demais a ponto de comprometer sua opera��o ser� considerada um produto ruim. � raro o usu�rio que acredite ser "burro demais" para oper�-la. O mesmo pode ser dito de boa parte dos eletrodom�sticos, cujo excesso de controles raramente intimida seus operadores.
Em 2016, muito se falar� dos novos carros aut�nomos. Grandes mudan�as s�o esperadas, mas � de senso comum que eles continuem a se parecer com autom�veis. O volante pode at� ser substitu�do por um manche de avi�o, mas n�o poder� deixar de existir. E se for trocado por algo t�o estranho quanto um guid�o de bicicleta, precisar� de um bom motivo para n�o ser descartado.
Esse bom senso raramente ocorre quando se fala em aplicativos e sistemas operacionais de computadores e dispositivos m�veis. Pelo contr�rio, estes lan�am m�o de terminologia complexa e atualiza��es compuls�rias para tornar seus aparelhos arcaicos e obsoletos.
Da mesma forma que a moda e a ind�stria cosm�tica, a tecnologia de consumo vem cedendo �s artimanhas do marketing e deixando de ser uma ferramenta para se tornar um artigo de luxo e estilo. Ela impulsiona o consumidor jovem, inseguro e com dificuldade de controlar seus impulsos por comprar dispositivos caros e sofisticados como forma de manifesta��o de sua identidade, descartando-os em nome do pr�ximo modelo. Os outros que corram atr�s.
N�o h� nada de errado em se buscar uma m�quina mais nova, contanto que as antigas continuem a ser operacionais, como carros, liquidificadores ou televisores antigos. Mas se uma televis�o com dez anos de idade ou um CD player com duas d�cadas de vida podem funcionar perfeitamente, o aparelho digital capaz de tocar v�deos e m�sicas dificilmente ser� capaz de realizar suas fun��es adequadamente depois de cinco anos de sua compra.
Essa press�o exp�e o consumidor de tecnologia a situa��es humilhantes e constrangedoras, de forma prolongada e repetitiva, atentando contra sua dignidade e integridade ps�quica. � uma forma de ass�dio moral.
Como acontece com boa parte dos casos de ass�dio, a tend�ncia � relativizar o problema e culpar a v�tima. Assim, sob a desculpa de aumentar a seguran�a, bancos e empresas de servi�os de computa��o em nuvem tomam atitudes arbitr�rias ao cancelar contas e for�ar a troca de senhas, transferindo a responsabilidade do sigilo para o pobre usu�rio.
Da mesma forma que o habitante de uma cidade cujo servi�o de seguran�a p�blica seja prec�rio � criticado por n�o ter uma porta refor�ada, alarme no carro ou carteira escondida, o usu�rio de tecnologia � compelido a submeter-se a constantes "atualiza��es" de sistema. Essas atualiza��es, compuls�rias, tornam seu aparelho que at� ent�o funcionava perfeitamente uma geringon�a lerda e in�til, incapaz de operar os mesmos aplicativos que funcionavam perfeitamente at� ent�o.
Quem resista a essa imposi��o mercadol�gica –por ideologia ou simplesmente n�o ver motivo para trocar mais uma vez de telefone– � discriminado e estereotipado por estrat�gias perniciosas de marketing, que lan�am m�o de todas as ferramentas de discrimina��o, do humor � restri��o de acesso, at� fazer com que � m�quina n�o sobre utilidade poss�vel que n�o seja a do lixo eletr�nico.
Em uma �poca que se contesta todo tipo de discrimina��o, o preconceito com rela��o � velhice dos computadores e de usu�rios que n�o conseguem ver valor na �ltima rede social ou traquitana eletr�nica � constante. Essa discrimina��o psicol�gica, que tende a classificar as pessoas pelo equipamento que usam, soaria estranh�ssima em usu�rios de autom�veis ou geladeiras. No mundo digital ela � t�o frequente que parece normal.
Ao contr�rio de outras formas mais evidentes e comuns de preconceito, essa restri��o tende a ser resistente � mudan�a e, com o tempo, transforma-se em profecia autorrealiz�vel. Suas v�timas, de tanto serem consideradas incapazes, menores e incompetentes, acabam por aceitar a humilha��o e pedir desculpas pelas baixas expectativas que seu humilde aparelho ter�.
Da mesma forma que uma v�tima de ass�dio moral em seu emprego, a v�tima desse preconceito tecnol�gico sofre uma degrada��o deliberada de suas condi��es de trabalho. Aos poucos o usu�rio da m�quina velha � isolado, hostilizado, ridicularizado, inferiorizado e desacreditado perante seus pares, at� que perca de vez a autoconfian�a e se renda � nova m�quina, t�o brilhante quanto descart�vel.
Trai�oeiro e de dif�cil identifica��o, o ass�dio tecnol�gico � t�o presente quanto dif�cil de provar. Mas seus efeitos s�o evidentes. � cada vez mais comum ver nos p�rias digitais a sensa��o de serem simpl�rios, velhos, anacr�nicos, burros, ultrapassados, incompetentes ou impotentes. Envergonhados por n�o condizerem �s expectativas tecnol�gicas da sociedade, muitos acabam por sentir uma enorme vergonha de si pr�prios.
Em sua humilha��o, mal podem compartilhar a ignor�ncia de seus pensamentos impuros sem assumir a culpa pela incapacidade de acompanhar a moralidade aceita. Presos a uma coleira psicol�gica, muitos passam a vida a correr sobre trilhos estabelecidos pelas estrat�gias das marcas, definindo sua identidade a cada novo aparelho adquirido.
� preciso assumir uma postura mais ativa contra os abusos do marketing tecnol�gico. N�o h� do que se orgulhar em n�o saber usar uma tecnologia. Se n�o ter um carro pode ser visto como uma manifesta��o de desapego ou liberdade, n�o saber guiar � uma limita��o.
N�o h� nada de esot�rico, m�stico ou complexo nos aparelhos e nas estrat�gias de domina��o global de seus fabricantes. Esse tipo de comportamento � comum em qualquer ambiente de rapina explorado por ambientes pouco regulados, em que a publicidade explora a inseguran�a e o desconhecimento da novidade para desrespeitar as conquistas que uma sociedade democr�tica tanto lutou para garantir a seus membros.
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