� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Seu corpo n�o � uma m�quina
A compra do fabricante do Botox pelo criador do Viagra representa muito mais do que uma simples fus�o de grandes empresas. Os produtos mais populares daquela que se tornar� a maior companhia farmac�utica do mundo deixam bastante clara uma caracter�stica t�pica dos tempos contempor�neos: a busca por tratar o corpo como se fosse m�quina, otimizando-o sempre que poss�vel.
A ind�stria que se alimenta dessa busca por uma perfei��o inating�vel � t�o grande que faz os cerca de US$ 160 bilh�es da transa��o que uniu as duas empresas parecerem uns caramingu�s. Ela envolve segmentos t�o diversos quanto gin�stica, cosm�tica, publicidade, comunica��o, moda, cirurgia pl�stica, alimenta��o, medicamentos, pr�teses e vitaminas, todos na busca de manuten��o e atualiza��o da m�quina humana para sua vers�o 2.0.
� ineg�vel que h� um componente virtual na rela��o entre pessoas "aumentadas" por Viagra, Botox e tantos outros. Eles parecem realizar uma esp�cie de performance, uma dan�a inspirada, desvirtuada e adulterada por vers�es diversas de pornografia, em que nem o corpo nem a ere��o pertencem a seus usu�rios.
Essa virtualidade agora ganha um novo componente com as tecnologias vest�veis e sensores variados, o que cria um estranho paradoxo: � medida que as m�quinas parecem estar cada vez mais vivas e aut�nticas, aqueles que antigamente as controlavam est�o hoje cada vez mais mec�nicos. E tratam seus corpos de maneira funcional, consumindo combust�veis aditivados com energ�ticos e mixes, para depois procurar purg�-los com dietas milagrosas e sucos "detox".
Adotar a met�fora de m�quinas e sistemas nem sempre foi uma ideia ruim. Muito pelo contr�rio: no passado, ela contribuiu para reduzir boa parte do misticismo que acompanhava o corpo humano e sua "alma" ou "aura", o que levou a um grande progresso e deu a base para a ci�ncia moderna.
Na Alemanha do final do s�culo 19 era comum ouvir propostas para adaptar os m�sculos � nova tecnologia. O termo caloria, surgido no per�odo, � utilizado para demonstrar a efici�ncia do motor humano em queimar seu combust�vel. Quando o rel�gio se popularizou, muitos imaginavam o funcionamento do c�rebro "como um rel�gio", met�fora que at� hoje sobrevive nos processos digestivos.
Quando surgiu o computador, n�o faltaram compara��es biol�gicas para explicar o "c�rebro eletr�nico", cujas vers�es de hardware tinham "gera��es" e o armazenamento interno era feito em diferentes "mem�rias". Hoje a met�fora se inverteu. � muito comum ouvir quem se refira ao c�rebro como um tipo de computador, cujos processos, por mais que partam de estruturas completamente diferentes, sejam parecidos.
Mas a evolu��o do pensamento para al�m do dom�nio m�gico criou uma divis�o curiosa: desde Descartes que se acostumou a considerar o indiv�duo partido entre seu corpo e "mente", como se o fardo mortal fosse uma simples m�quina a servi�o de uma mente soberana que o pilotaria.
A neuroci�ncia, no entanto, prova que o mecanismo humano � muito mais complexo do que sugere a met�fora. Sua natureza � t�o diferente que nem poderia ser considerada um tipo de m�quina. O corpo n�o � separado, nem compat�vel com atualiza��es tecnol�gicas. Sua efic�cia � impressionante, mas est� longe de ser perfeita, o que � compensado muitas vezes por sua extrema flexibilidade e variedade.
Acima de tudo o corpo humano n�o � resultado de design ou projeto, mas sim formatado por uma quantidade gigantesca de mudan�as infinitesimais ao longo de muito tempo. Seu principal objetivo, � sempre bom lembrar, � a reprodu��o e perpetua��o da esp�cie, n�o a longevidade ou a juventude.
Compara��es do corpo com a m�quina e vice-versa podem reduzir a complexidade, mas correm o risco de causar uma grande confus�o ou limitar o racioc�nio. Um corpo �... um corpo, e s� pode ser comparado com outra estrutura biol�gica viva. Met�foras tecnol�gicas s�o t�o v�lidas para explic�-los quanto ilustrar uma orqu�dea com argumentos de basalto.
No entanto a met�fora da m�quina � t�o usada que poucos pensam nela como um simplificador. Fora de contexto, o corpo se desintegra e se torna um conjunto de qu�micos, neurotransmissores e impulsos el�tricos, sem prop�sito nem finalidade.
Dados e m�tricas em demasia e fora de contexto geram ansiedade. O indiv�duo quantificado pode facilmente analisar seus valores isolados em busca de padr�es e anomalias. � curioso pensar que, justamente em uma �poca de grande sa�de e longevidade muitos se dediquem a buscar doen�as e objetivos inating�veis, como hipocondr�acos. Viciados em diagn�sticos e obcecados por n�meros, muitos n�o tem a serenidade para lidar emocionalmente com tanta informa��o e compara��o.
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