� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Crime digital � crime
J� est� na hora de abandonar os termos "digital" e "eletr�nico" no que diz respeito �s rela��es mediadas por computadores e afins. Da mesma forma que n�o se usam os termos "el�trico", "mec�nico" ou "qu�mico" para se referir a quest�es de infraestrutura, a classifica��o de um ato como "digital" coloca a �nfase no componente errado do processo. E pode minimizar a sua import�ncia.
Digital n�o � sin�nimo de tecnologia. � uma forma de relacionamento. Uma discuss�o por WhatsApp n�o � melhor nem pior do que uma discuss�o por carta ou fax. E, como suas anteriores, deixa rastros que podem ser documentados ao mesmo tempo que ajudam a solucionar erros de interpreta��o.
Um chaveiro que invada um pr�dio e teste cada porta sem autoriza��o de seus propriet�rios, munido de um conjunto de ferramentas dedicadas e um grande molho de chaves � um criminoso. Se for pego, precisar� de uma boa justificativa para n�o acabar na cadeia. Certamente algo melhor do que dizer que pretendia entrar nas casas para deixar seu cart�o e mostrar que as fechaduras usadas eram inseguras, sem a inten��o de levar nada.
Redes digitais, como a eletricidade e os motores a explos�o, j� foram uma grande novidade. N�o s�o mais. Hoje elas permeiam boa parte das intera��es entre pessoas, empresas e governos. � cada vez menor o n�mero de opera��es relevantes poss�vel sem o aux�lio de computadores e da Internet.
Com�rcio Eletr�nico � Com�rcio, e o mesmo vale para quase toda transa��o. Mesmo que o consumidor n�o use aplicativos nem v� a websites para realizar a compra, boa parte das transa��es financeiras, log�sticas, administrativas e de marketing n�o seria poss�vel sem a rede. A diferen�a dos termos (ou a utiliza��o do prefixo "e-") mais dificulta a compreens�o do processo do que o explica.
M�sica eletr�nica, da mesma forma, � m�sica (ou n�o � m�sica, conforme o crit�rio pessoal de quem a escuta). H� muito de eletr�nico nos processos de capta��o, produ��o, edi��o, masteriza��o e distribui��o de uma pe�a sonora, pouco importa que tenha sido produzida em instrumentos "ac�sticos" ou gravada em LPs.
Livros e textos jornal�sticos n�o dependem do meio para transmitir a sua mensagem. Estejam em papel, Kindle ou �udio, sua argumenta��o ainda � a mesma. Jogos eletr�nicos, estejam baseados em v�deo ou n�o, s�o jogos. E, portanto, envolvem as mesmas paix�es e torcidas.
Cursos � dist�ncia promovem, ou deveriam promover, treinamentos e capacita��es. Se n�o o fazem, na maior parte das vezes a culpa � de conte�do fraco e material did�tico ruim, mais preocupado com a firula gr�fica do que com a efetiva forma��o.
O meio digital n�o pode salvar a reputa��o de quem acredita que ensinar� conceitos delicados por meio de desenhos animados de baixa qualidade e perguntas em forma de teste com cron�metros. Se isso n�o funcionaria no tempo da apostila, n�o � de se esperar que funcione hoje.
Uma transa��o financeira, seja em cheque, cart�o, home banking ou aplicativo, movimenta uma riqueza que, apesar de intang�vel, n�o � menos verdadeira. Por mais que a ag�ncia seja virtual, a conta e o saldo s�o reais.
Mediadas por telinhas ou n�o, as rela��es sociais contempor�neas n�o s�o mais ou menos intensas por estarem acompanhadas de bonequinhos e caretas. Bullying, ass�dio e preconceito s�o crimes. O fato de serem realizados � dist�ncia, sem compreens�o do contexto, por impulso ou incentivado por um grupo n�o fazem desses delitos atos menos graves.
A��es de espionagem, sabotagem e furto de informa��es entre governos, hoje mais popular do que nos rom�nticos tempos da Guerra Fria e seus 007s munidos de c�meras de microfilmes e bombas-rel�gio, devem ser tratadas como incidentes diplom�ticos. � preciso remover delas o prefixo "cyber-", que nesse caso, parece mais um eufemismo do que uma categoria.
A espionagem industrial chinesa, que rouba os projetos de avi�es militares dos EUA, precisa ser punida pela Organiza��o Mundial do Com�rcio ou por �rg�os de defesa de patentes, propriedades comerciais e segredos militares, n�o por um grupo de nerds atr�s de seus laptops.
A sabotagem do programa nuclear Iraniano pela a��o conjunta dos governos dos EUA e Israel, por mais ben�fica que tenha sido para o resto dos pa�ses do Oriente M�dio (e do mundo) � um ato de guerra, uma invas�o com destrui��o, e deve ser tratada como tal.
O roubo de documentos oficiais, por mais que aumente a transpar�ncia da diplomacia global, n�o deixa de ser um furto. E pode colocar em risco a seguran�a de muitos pa�ses. Figuras controversas como Julien Assange e Edward Snowden n�o teriam a fama que t�m se n�o estivessem em um v�cuo de legisla��o.
Por ignor�ncia e pregui�a, muitos culpam o meio digital por desvios da sociedade. A rede pode acelerar e amplificar os discursos, mas n�o os cria. N�o se pode culpar o megafone pelo discurso de �dio que ele amplifica.
No entanto esse parece ser exatamente o problema vivido hoje. Culpa-se a tecnologia por desvios causados por quem a utiliza com objetivos escusos, a ponto de que muitos proporem a sua extin��o ou restri��o de uso, o que n�o passa de uma gigantesca bobagem, t�o prejudicial quanto infrut�fera.
� preciso parar de considerar o mundo digital como um ambiente � parte. Ele n�o �. Seu conte�do � gerado pelas mesmas pessoas, com as (m�s) inten��es de sempre e sua caracter�stica (falta de) educa��o. A rede s� as torna mais transparentes.
O mundo n�o � mais podre por causa da Internet. � s� mais honesto. Por mais feia que seja a imagem no espelho, h� sempre o consolo de saber que ela � o que h� de mais pr�ximo do real.
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