� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Problemas vs. mist�rios
O linguista Noam Chomsky uma vez sugeriu que a ignor�ncia, ou o desconhecimento que se tem a respeito de um tema qualquer, poderia ser dividida entre duas categorias: problemas, ou fatos que estejam dentro da capacidade de racioc�nio; e mist�rios, que se localizem al�m dela.
Segundo ele, os problemas abrangem as quest�es que podem ser compreendidas e respondidas, mesmo que n�o sejam diretamente solucionadas. Restritos pela forma��o individual, seu tamanho estaria relacionado � capacidade ou ao alcance cognitivo de cada um, derivado de suas aptid�es e interesses. Um problema pode ser grande ou pequeno, simples ou complexo, interessante ou mon�tono. Sua solu��o pode estar parcialmente ou completamente certa ou errada, n�o importa. Basta que seja pass�vel de identifica��o, representa��o e transmiss�o.
Mist�rios, por sua vez, t�m uma caracter�stica particular. Eles s�o, por defini��o, insol�veis, inexplic�veis, incompreens�veis. Sob esse aspecto, causam impacto maior do que os problemas por serem inacess�veis, t�o grandiosos que desafiam a capacidade de quem os enfrenta de conhecer a sua verdadeira natureza. Como as respostas est�o al�m da compreens�o, s� � poss�vel acat�-las.
Quando um problema � enfrentado, pode-se n�o conhecer a sua solu��o nem saber se ela ser� definitiva ou causar� problemas ainda maiores. Mesmo assim h� uma ideia razo�vel do que se pode esperar como resposta. J� quando o que surge pela frente � um mist�rio, a �nica op��o que se apresenta � a da contempla��o. Como n�o h� ideia do que o tenha causado nem a menor compreens�o de sua estrutura, n�o se pode imagin�-lo de forma diferente. Seu controle ou transforma��o est�o al�m da capacidade de quem o vivencia.
Boa parte das religi�es, crendices e mitologias surgiram para explicar os mist�rios do dia a dia e, no processo, apaziguar �nimos e estabilizar revoltas contra desigualdades sociais. Praticamente todo povo primitivo tem suas raz�es, banais ou elaboradas, para fen�menos que desafiam a compreens�o de seus membros, como a noite, a chuva, o abandono, a morte, a desigualdade de g�nero, a repress�o e as diversas injusti�as a que a carne � exposta.
A inf�ncia tamb�m � repleta de mist�rios. No processo de crescimento intelectual alguns conseguem problematiz�-los e, dessa forma, ampliar sua vis�o de mundo. N�o � confort�vel, mas � libertador. A intelig�ncia, ou capacidade de resolver problemas, � uma via de m�o �nica, muitas vezes tortuosa e dolorida, para a qual n�o h� volta. N�o h� pessoa esclarecida que, em um momento de agonia e desespero, n�o tenha desejado ser burra para sofrer menos. O contr�rio raramente ocorre.
Os ganhos da intelig�ncia n�o s�o palp�veis e nem sempre correspondem a melhor qualidade de vida. Isso faz com que muita gente se torne pragm�tica, abandonando o debate e abra�ando "verdades" sociais de forma inquestion�vel. O que � um fato que demandaria exame se transforma em preconceito, estreitando a vis�o. Arrogantes com sua vers�o particular do conhecimento, muitos criam novos mitos para os acontecimentos de que n�o t�m vontade, paci�ncia ou energia para pesquisar a raz�o ou o mecanismo. E nesse processo envelhecem e endurecem, resistindo de todas as formas ao que desafie seu modo de ver.
Mist�rios, de t�o abundantes, s�o considerados for�as naturais. N�o se sabe como o outro pensa, o que o levou a chegar a tais conclus�es, o que poderia faz�-lo mudar de ideia. Suas vias misteriosas, como aquelas que muitos consideram divinas, n�o s�o question�veis. Quando n�o � poss�vel compreend�-las, n�o h� negocia��o nem forma de mud�-las. E assim se transita pelo mundo sem esfor�o nem descoberta, resignado a coletar o que � oferecido.
Problemas, por sua vez, incomodam. Problematizar � chato, problem�ticos n�o querem saber de "solucion�ticas". � t�o mais f�cil reclamar do que protestar, resmungar do que criticar, se resignar do que debater que, por uma mistura de economia de energia e cansa�o generalizado, muitas boas inten��es n�o deixam o caderno de rascunhos. Se � que chegam a ser escritas em algum lugar.
Produtos de entretenimento como Netflix ou redes de compra como Amazon fortalecem esse comportamento bovino. Ao estimular as "prefer�ncias" de seus usu�rios, n�o raro refor�am um ponto de vista consolidado, para o qual n�o parece poss�vel haver vis�es alternativas. E assim cercam seus usu�rios de narrativas que consolidam sua vis�o c�moda e imut�vel.
Da mesma forma, jogos como Facebook e Twitter, travestidos de redes de integra��o social, isolam seus usu�rios do mundo real � sua volta, refor�ando sua opini�o e a vis�o daqueles que, como os l�deres espirituais, s�o "seguidos". De uma forma dogm�tica e restrita, n�o h� questionamento nem oposi��o. Quando n�o h� concord�ncia poss�vel a �nica solu��o que se apresenta � o corte da rela��o.
Boa parte do desconforto social que se vive atualmente vem dessa vis�o misteriosa, fechada e dogm�tica do mundo, para a qual n�o parece haver sa�da. Muitos querem abandonar tudo: escola, empregos, cidade, casamento e identidade, sem saber ao certo para onde ir. N�o parece haver disposi��o ou paci�ncia para escutar, ceder, compreender, transformar ou reformar a riqueza que se possui. No mundo de maravilhas e op��es brilhantes mostrado pelas redes, a terra de oportunidades est� a um clique de dist�ncia. Para ela o legado constru�do n�o passa de um fardo, lastro que impede cada um de al�ar grandes voos.
Problemas, por mais desconfort�veis que sejam, costumam trazer uma grande satisfa��o � medida que s�o enfrentados, conquistados, ultrapassados. Como aquela montanha que parece intranspon�vel at� ser transposta, s�o espelhos da grandeza de vis�o dos que se dedicam a enfrent�-los.
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