� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Livros demandam respeito
Foi o "N�mero Zero", do Umberto Eco, mas poderia ter sido qualquer outro. A edi��o, descuidada, dava claros ind�cios de ter sido feita �s pressas. A capa, com tipografia de bestseller e composi��o prim�ria, ela tinha uma cara pasteurizada de banco de imagem. Mas o pior estava dentro. Apesar do colof�o (aquele texto que, por tradi��o, aparece na �ltima p�gina dizendo qual � o papel e a tipografia usados no livro) dizer que a hist�ria havia sido composta na fam�lia tipogr�fica ITC Souvenir Std, o primeiro cap�tulo e os dois �ltimos estavam escritos em outra tipografia, que se n�o me engano era Helvetica (ou seria Arial?). A transi��o era perturbadora. E nada nele deixava claro que aquela deveria ser a inten��o do autor ou do designer. A n�o ser que a delicadeza semi�tica de um autor de tamanha envergadura me escapasse � compreens�o. Considerando que Umberto Eco � respons�vel por t�tulos como "A Estrutura Ausente", que nunca consegui vencer, tudo seria poss�vel.
Da mesma forma que nem todo livro em papel � perfeito, quem reclama da qualidade da leitura em um livro digital precisa se atualizar. Maquininhas com nome de pok�mon como Kindle, Kobo e Lev est�o cada vez mais port�teis e parrudas. Sua tela, sem brilho e com excelente resolu��o, propicia uma experi�ncia cada vez mais pr�xima da impressa. Provavelmente eles nunca provocar�o o impacto sensorial de um livro de capa de couro e folhas grossas de papel fosco, mas n�o � para isso que existem. Sua maior vantagem, como a dos livros de bolso que os precederam, � a portabilidade.
Estes, quando foram inventados, tamb�m sofreram cr�ticas. No s�culo 16, o genial tip�grafo veneziano Aldo Manuzio, que tem em seu curr�culo inven��es como o estilo It�lico, prop�s a ideia de um livro de bolso para facilitar o transporte do conhecimento. Sua ideia era simples: ao reduzir o tamanho do objeto, ele seria capaz de reduzir seu pre�o e permitir que grandes quantidades fossem transportadas.
O livro de Manuzio era genial em teoria. Mas na pr�tica enfrentou problemas de produ��o e acabamento. Tanto as prensas quanto a tinta da �poca n�o eram capazes de reproduzir letras e encaderna��es pequenas com uma qualidade pr�xima dos livros conhecidos. Debaixo de cr�ticas, a ideia foi abandonada. Por s�culos.
As primeiras m�quinas dedicadas � leitura de eBooks, criadas por empresas japonesas como Sony e NEC, tinham uma resolu��o que dava saudades das velhas impressoras matriciais. Para piorar, os primeiros livros a se aproveitar da nova plataforma foram digitalizados �s pressas, por gente que parecia n�o entender muito de computa��o nem de diagrama��o. O resultado foram c�pias mal-escaneadas ou textos interpretados por computadores, cheios de erros de digitaliza��o e interpreta��o, provocando uma experi�ncia de leitura inferior � de xerox de centro acad�mico. A combina��o de hardware primitivo com software (sim, um livro digital, como um website, � software) falho foi respons�vel pela m� impress�o que se criou dos primeiros livros digitais.
A hist�ria mudou quando as editoras passaram a investir na diagrama��o de livros em EPUB3 e outras varia��es de HTML, permitindo que os leitores tivessem uma experi�ncia de leitura consistente e serena. O Kindle Paperwhite, da Amazon, foi o primeiro a ter uma resolu��o de leitura e cor de tela boas o suficiente para que passassem despercebidas. Logo o Kobo Glo seguiu a tend�ncia. Apesar da experi�ncia ainda estar a uma enorme dist�ncia da cor, textura, cheiro e som de um papel creme (que as gr�ficas passaram a chamar de p�len e hoje o classificam como "off-white", seja l� o que isso signifique), o branco das maquininhas era quase branco de verdade, bom o suficiente para a leitura de um livro inteiro.
O que muitos fabricantes de livros eletr�nicos parece n�o ter entendido � que um livro � muito mais do que um simples ve�culo de leitura. Objetos culturais estabelecidos e consagrados, eles s�o �cones culturais muito mais respeitados do que uma p�gina de jornal ou revista, ou mesmo do que uma fotografia em papel ou filme. Ao contr�rio de um documento digital cuja leitura n�o foi terminada, o objeto livro convida e provoca seus leitores, desafiando-os a l�-los. Suas p�ginas podem ser folheadas, marcadas ou rabiscadas. Ao serem consumidas, sua transforma��o f�sica marca uma rela��o objetiva com seu leitor. Intocado, um livro novo � fr�gil. � medida que ele � devorado, suas p�ginas acolhem e envolvem o leitor. Textos que levem a pensar s�o marcados e questionados, e quando se empresta um livro seus questionamentos tamb�m s�o emprestados.
Mais do que um reposit�rio, o livro � objeto, conceito e ferramenta humana. Ao fazer uma defesa da leitura, da cultura e da civiliza��o, o livro demanda respeito. O nome Kindle, curiosamente, quer dizer "acender" ou "tocar fogo". Para o aparelho da Amazon, o uso deve ter sido com o sentido de emocionar. Mas a aproxima��o de livros e fogo �, no m�nimo, inadequada. Objetos de admira��o e fetiche, livros sempre foram queimados em regimes opressivos por conterem ideias perigosas. Em "Farenheit 451", Ray Bradbury e depois Fran�ois Truffaut falam dos horrores de um mundo em que eles eram incendiados. Por mais que n�o haja problemas em colocar fogo nas p�ginas de um jornal ou revista velhos para acender uma fogueira, ningu�m razoavelmente civilizado pensa em fazer o mesmo com um livro. Mesmo que o livro j� tenha sido lido e n�o seja grande coisa.
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