� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
A dura cabe�a digital
Todos gostam de imaginar que s�o racionais, l�gicos e objetivos. A realidade, no entanto, � muito diferente: boa parte dos valores e cren�as que circulam pela mente humana � resultado de um processo lento e progressivo que consiste em pouco mais do que prestar aten��o em determinadas ideias e ignorar outras, formando aos poucos uma vis�o de mundo.
O que se convencionou chamar de opini�o �, na maioria das vezes, resultado de um processo de doutrina��o que pode levar tanto ao radicalismo pol�tico quanto � f� cega em seitas e homeopatias diversas. Ao prestar aten��o a informa��es que confirmem o que se conhece enquanto se ignora ou relativiza aquilo de que se discorda, at� a situa��o mais absurda pode ser considerada normal.
Chamado de "vi�s de confirma��o", esse processo cerebral � uma esp�cie de filtro atrav�s do qual a realidade � interpretada, de forma que se adapte �s expectativas que se tem dela. � um recurso engenhoso, que n�o s� protege o indiv�duo de ter que admitir um erro, como tamb�m lhe d� a impress�o de que chegou a tal conclus�o a partir de um racioc�nio l�gico.
Autor de uma das ideias mais controversas, inovadoras e importantes da Ci�ncia moderna, Charles Darwin recorria a um truque para escapar do vi�s de confirma��o: sempre que se deparava com alguma observa��o que contradizia alguma de suas conclus�es pr�vias, ele se for�ava a escrever a nova descoberta em at� 30 minutos. Caso contr�rio, afirmava, sua mente trabalharia para rejeitar as informa��es discordantes, como o corpo rejeita transplantes.
O vi�s de confirma��o afeta todas as decis�es ditas "racionais", de posi��es pol�ticas a caminhos a se tomar no tr�nsito. Como n�o se pode verificar cada novo fato que surge, tende-se a confiar no que � comunicado. Mesmo quando a coleta de informa��es � neutra, sua interpreta��o pode ser enviesada ou lembrada seletivamente para refor�ar as expectativas.
N�o � dif�cil imaginar as consequ�ncias perniciosas desse tipo de ingenuidade latente. A busca, interpreta��o e mem�ria tendenciosas ajudam a explicar determinadas posi��es, por mais radicais ou pat�ticas que sejam. Ela tamb�m ajuda a compreender porque tantos perseveram em suas cren�as mesmo quando tudo prova o contr�rio, buscando as correla��es mais esp�rias e os factoides mais absurdos para provar crimes, curas ou conspira��es inexistentes.
Enquanto organiza��es religiosas procuram se apoiar na fidelidade de seus rebanhos e classificar eventuais contradi��es em sua l�gica furada como mist�rios da f�, as institui��es laicas respons�veis pelo progresso social desde o Iluminismo –em especial o Jornalismo e a Ci�ncia– se desenvolveram propondo investigar a realidade de uma forma neutra, problematiz�vel e verific�vel.
Cientistas que desejam provar uma hip�tese devem projetar experimentos com pouco ou nenhum espa�o para d�vidas ou interpreta��es alternativas. Chega-se � verdade procurando evid�ncias em contr�rio, e mesmo essa verdade nunca � dogm�tica: ela est� dispon�vel para ser contestada a qualquer instante.
Da mesma forma, jornalistas respons�veis aprendem a evitar a tend�ncia de ignorar fatos que contradigam sua hip�tese inicial, e fundamentam suas hist�rias com informa��es contextuais vindas de fontes confi�veis e verific�veis.
Mas ultimamente essa tradi��o de confian�a vem sendo atacada por uma promiscuidade crescente com a publicidade, as m�dias sociais e diversas formas de espet�culo. Em busca de audi�ncia, muitos ve�culos de tradi��o e respeito investem em "opini�es pol�micas" ou "jornalismo c�mico".
Ao contr�rio do que acontece em regimes fechados, que uma opini�o forte pode resultar em pris�o ou no fechamento do ve�culo e a com�dia � usada para fazer cr�ticas veladas que n�o passariam pelo crivo da censura, em regimes democr�ticos tais pr�ticas n�o promovem o debate, a exposi��o a diversas perspectivas e o aumento da toler�ncia. Pelo contr�rio, not�cias c�micas ou pol�micas ridicularizam quest�es irrelevantes de seus opositores, eliminando qualquer possibilidade de debate com golpes baixos e sujos.
Hoje que cada um � capaz de (e obrigado a) desenvolver suas pr�prias refer�ncias �ticas para distinguir entre usos leg�timos e ileg�timos de conte�do em seus ambientes culturais - ou seja, de fazer sua pr�pria sele��o e edi��o de conte�do –a internet se transforma em uma esp�cie de lente cultural atrav�s do qual se constr�i ou distorce a realidade. A maneira como uma busca � elaborada pode fazer uma grande diferen�a no tipo de resultado obtido.
Sem esfor�o pode-se buscar imediatamente o suporte para a ideia mais bizarra. Se a pesquisa inicial n�o trouxer os resultados esperados, mudam-se os argumentos de busca e o processo recome�a at� que a hip�tese se verifique, invertendo o m�todo cient�fico.
Cada busca realizada na internet reflete a personalidade de quem a realiza. Google admite que o Page Rank, seu algoritmo para produzir e classificar os resultados se baseia em parte na hist�ria de busca realizada naquele computador ou por aquele usu�rio. De forma similar, o EdgeRank, algoritmo do Facebook, elenca os conte�dos apresentados pelo n�vel de intera��o que se tem com seus publicadores. Em outras palavras, quanto mais forte for o v�nculo social que se tem com quem escreve, mais conte�do dessa pessoa aparecer� na linha do tempo. Como raramente se tem rela��es intensas com pessoas de base ideol�gica oposta, o resultado � a confirma��o que aumenta a polariza��o.
Cercado de pessoas que compartilham das mesmas opini�es, � dif�cil pensar de forma diferente. Quando surgem os eventuais conflitos, cada um procura as pessoas que confirmam suas cren�as, que por sua vez amontoam "evid�ncias" a partir da informa��o filtrada por buscas tendenciosas. Dessa forma, cada lado n�o s� se sente correto, mas justo. O debate inteligente desaparece, mas da mesma forma que acontece com sal, gordura ou a��car, o c�rebro adora.
Muito se diz que as m�dias sociais aumentam o isolamento e a sensa��o de inferioridade de boa parte de seus usu�rios. Esse isolamento parece tamb�m se estender para o campo ideol�gico. A polariza��o que se v� � mais resultado de uma aliena��o do que de um debate construtivo.
Hoje que h� conte�do abundante e todos s�o fonte de informa��o, n�o h� mais car�ncia de dados. Para evitar a obesidade, � preciso desenvolver um programa de gin�stica mental. Antigamente se recomendava acompanhar tr�s ve�culos de imprensa com linhas editoriais bem diferentes. Hoje isso praticamente n�o existe.
Mas as t�cnicas para desenvolver a imparcialidade, presentes em qualquer manual de jornalismo ou pesquisa cient�fica, continuam v�lidas: citar fontes, desenvolver uma reputa��o de precis�o, respeitar a opini�o alheia, ser o mais transparente poss�vel e evitar polariza��es a n�o ser que se esteja pronto para defender sua posi��o s�o algumas delas.
Nessa ditadura de certezas, � cada vez mais importante identificar e reconhecer o tamanho da pr�pria ignor�ncia, porque isso ajudar� a prestar aten��o no que se v�, de forma curiosa e criativa, em vez de desdenhar a pessoa que emite a opini�o de que se discorda.
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