� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Nenhuma ilha � uma ilha
O poeta ingl�s John Donne, autor da famosa express�o que contrap�e homens a ilhas, hoje provavelmente apelaria para outra met�fora. Na rede conectada em que se vive, da qual a internet representa s� uma pequena parte, n�o h� mais ilhas desertas.
O v�rus cognitivo que chamamos de "Cultura" surgiu h� cerca de 70 mil�nios na esp�cie, estimulando-a a criar estruturas sociais cada vez mais complexas, cada uma com sua interpreta��o particular da realidade. Na forma de mitos, institui��es e costumes, esses padr�es de comportamento criaram uma nova ci�ncia, separando seus atos de simples motiva��es biol�gicas e criando que se passou a chamar de "hist�ria".
A opini�o � do historiador israelense Yuval Harari, em seu abrangente livro chamado "Sapiens", rec�m lan�ado pela L&PM. Segundo ele, n�o se sabe ao certo como a hist�ria come�ou. Uma coisa � certa: ao ganhar independ�ncia do determinismo biol�gico, as narrativas se tornaram cada vez mais complexas e multifacetadas, indistingu�veis da realidade. Para compreender o Cristianismo ou a Revolu��o Francesa, defende o autor, j� n�o basta (nem adianta) buscar compreender a intera��o de genes, horm�nios e organismos com o seu ambiente. � preciso levar em conta a intera��o de ideias, imagens e fantasias.
A cultura humana, por mais forte que seja, n�o � suficiente para dissoci�-lo do animal que o precedeu. Com 99% de seu DNA id�ntico ao de chimpanz�s e bonobos, o homin�deo tem menos de sapiens do que gostaria, e constr�i boa parte de suas institui��es e ide�rios por cima dos mesmos instintos dos neandertais e primatas que o precederam, com os mesmos desejos, medos e rela��es familiares do que se v� entre outras esp�cies de macacos.
A semelhan�a entre as esp�cies � t�o grande que diferen�as s� aparecem quando se formam aglomerados de mais de 150 indiv�duos, como prop�e o antrop�logo ingl�s Robin Dunbar, ao comparar o tamanho dos c�rebros humanos com o de outros primatas. Quando as aglomera��es chegam aos milhares de indiv�duos, as diferen�as impressionam. Padr�es de comportamento como fam�lias, na��es, partidos pol�ticos e corpora��es jamais poderiam ser formadas pelos c�rebros que n�o tem o nosso 1%.
A mesma cultura que propicia viagens da imagina��o tamb�m restringe seus participantes a confinamentos imagin�rios. Como diz a sabedoria popular, a Cultura pro�be tudo que a Biologia permite. O que � poss�vel �, por defini��o, tamb�m natural. As restri��es que o bando de radicais fundamentalistas disfar�ados de religiosos espalhados pelo mundo alegam ser "contra a natureza" n�o s�o tiradas da Biologia, mas da Teologia Crist�, praga medieval que insiste em se perpetuar atrav�s do discurso apavorado e med�ocre de todos que defendem qualquer tradi��o.
Cada cultura tem cren�as, normas e valores que mudam com o tempo. De vez em quando retrocedem, mas a tend�ncia geral � avan�arem para um ambiente plural e tolerante, rico em oportunidades. As mudan�as podem vir de conflitos e contradi��es internas, embora sejam, na maior parte das vezes, aceleradas pelo contato com outras vis�es de mundo.
Ao longo dos mil�nios, diferentes culturas foram atra�das ou conquistadas por civiliza��es maiores e mais complexas, tornando o mundo cada vez maior em oportunidades e pontos de vista, ao mesmo tempo que menor em diversidade. A cultura � global, mesmo que n�o seja homog�nea. N�o h� mais ilhas desertas ou popula��es isoladas. As poucas fam�lias que ainda se escondem na Amaz�nia e Nova Guin� s�o exce��es que validam a regra.
Organismo social heterog�neo, a rede global est� longe de ser uniforme. E isso � uma excelente not�cia. Ela conecta bilh�es de indiv�duos que, mesmo tendo estilos de vida e origens completamente diferentes, trocam ideias entre si usando das mesmas abstra��es, estruturas t�o complexas quanto p�trias ou corpora��es. Quando culturas entram em conflito, n�o h� mais choque de civiliza��es. Suas for�as e t�ticas podem ser diferentes, mas os termos –sejam eles dinheiro, armas ou v�rus de computador– s�o os mesmos.
Alguns ing�nuos ainda buscam fugir dessa cultura global em que se vive hoje, propondo um retorno � sociedade pura do "bom selvagem", que seria aut�ntica, livre dos pecados modernos. Isso n�o � poss�vel. Todas as associa��es humanas s�o colagens de culturas que a precederam. Sem a coloniza��o do M�xico n�o haveria pimenta na �ndia ou macarr�o ao sugo na It�lia. N�o se pode voltar a um estado "inicial" sem causar ainda mais danos. E mesmo ele seria t�o isolado e puro quanto uma jaula de zool�gico.
N�o h� sa�da poss�vel para a civiliza��o contempor�nea a n�o ser o entendimento de seu poder e dimens�o e, atrav�s dessa compreens�o, da busca por uma verdadeira mudan�a, de todos para todos.
Nos �ltimos 100 anos nossas vidas se transformaram mas nossos corpos n�o. Mudamos pouco porque as m�quinas e a sociedade o fizeram por n�s. Pouco importa o quanto nossos futuros descendentes se impressionem ao ver como est�vamos distante da Utopia, eles se parecer�o conosco. Isso ocorre porque, para seres humanos, o futuro evolucion�rio n�o reside mais no que se �, mas na forma com que se pensa.
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