� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Canis et circensis
O mundo h�brido de sentimentos e tecnologias � capaz de promover algumas crueldades jamais imaginadas. Um exemplo recente est� na Sony, que ao descontinuar o suporte e manuten��o de sua linha de rob�s caninos AIBO, condena � morte certa os cerca de 150 000 beagles que vendeu entre 1999 e 2005. Diferente dos animaizinhos que supostamente teriam sofrido maus tratos no Instituto Royal de S�o Roque, o fim da vida desses c�ezinhos digitais ser� t�o indolor quanto a "morte" de qualquer outro dispositivo eletr�nico.
O mesmo, no entanto, n�o poder� ser dito de seus pobres donos. Muitos deles, especialmente os mais velhos, desenvolveram com seus mascotes eletr�nicos uma rela��o mais intensa do que normalmente se d� com traquitanas computadorizadas. Para alguns, suas m�quinas ganharam vida pr�pria.
� f�cil julgar esses usu�rios. Um rob� � mais c�modo e conveniente do que um animalzinho, da mesma forma que um c�o ou gato � mais c�modo e conveniente do que uma crian�a. A realidade, no entanto, � mais complicada e sutil. Por demandarem um longo per�odo de treinamento e adapta��o, os bonecos, como os mascotes vivos, criam em seus donos uma forma de depend�ncia psicol�gica. Por mais que as necessidades e demandas de um aparelho digital sejam constru�das, a rela��o emocional entre pessoas e objetos � mais comum do que se imagina. Ela se d� nos telefones que s�o customizados com capinhas, protetores de tela e diversos aplicativos e configura��es, dando a seus usu�rios um trabalho que uma TV, uma m�quina de lavar ou um liquidificador jamais ousariam.
� uma rela��o delicada. Quando d� certo, ela oferece a seus donos um ombro amigo, mesmo que artificial, para que frustra��es com rela��o a um mundo exterior cada vez mais frio e competitivo sejam desabafadas. Em sociedades extremamente agressivas, como as do Jap�o e de Cingapura, em que mostrar qualquer fragilidade (em casos mais extremos, at� procurar ajuda psicol�gica) � considerado sin�nimo de fraqueza, esses tamagotchis - vivos ou n�o - s�o v�lvulas de escape poss�veis. O mesmo se d� para os espa�os sociais agressivos e isolados em que um n�mero cada vez maior de jovens � obrigado a viver, abandonados pelos pais e oprimidos pelo grupo.
AIBO � mais do que um brinquedo. Como v�rias "loucuras" que mal deixaram o Jap�o, o c�ozinho � pouco conhecido no Ocidente. Acr�nimo para Rob� de Intelig�ncia Artificial e hom�nimo para "amigo" ou "parceiro" em japon�s, os �ltimos Aibos eram capazes de falar mais de mil palavras, compreender mais de cem e se exprimir em mais de 60 estados emocionais. Os mais emp�ticos podiam ver o mundo de seu ponto de vista atrav�s de uma c�mara embutida na cabe�a do c�ozinho.
� f�cil dizer que um rob� n�o � um ser vivo, mas o que identifica a "vida" em uma rela��o afetiva? C�es s�o vivos, mas n�o compreendem. Rob�s n�o s�o vivos, mas est�o cada vez mais pr�ximos de uma simula��o bastante razo�vel de compreens�o. Como previu o Teste de Turing, a m�quina n�o precisa pensar, desde que aparente faz�-lo.
J� faz um tempo que os g�neros fant�sticos da literatura lidam com essa dial�tica existencial. Em 1982, os androides de Blade Runner se comportavam como humanos, se sentiam vivos e se revoltavam com o fato de serem tempor�rios. Em Toy Story, o astronauta Buzz Lightyear tem de aprender a not�cia deprimente de que, em vez do indiv�duo livre e aut�ntico que acredita ser, ele n�o passa de um boneco, vendido em grandes quantidades em lojas, id�ntico a milhares de outros, banal e com discurso previs�vel.
Nos planos da Sony, o c�ozinho deveria se transformar em uma nova plataforma, como o PlayStation. Mas os primeiros modelos eram limitados, e como aconteceu com o Orkut para o Google, o AIBO nunca passou de um projeto paralelo para a empresa, acostumada a vender produtos �s dezenas de milh�es, n�o centenas de milhares. Na virada do s�culo, quando a gigante japonesa entrou em crise, o projeto foi encerrado. A assist�ncia t�cnica durou mais uma d�cada. Mas o aparelho � muito mais complicado do que um jipe ou fusca, por isso as pe�as come�aram a rarear e as oficinas fecharam. Sobrou para mec�nicos informais que canibalizam partes funcionais de alguns para consertar outros.
Tem coisas do Jap�o que parecem Fic��o Cient�fica. Para a religi�o Xinto�sta, muito popular no pa�s, tudo est� interligado. Suas divindades, os "Kami", podem ser definidos como esp�ritos ou ess�ncias presentes em cada objeto. Partes de um todo indivis�vel, eles est�o integrados � ess�ncia humana em uma grande rede complexa. � misticismo, mas est� cada vez mais pr�ximo do futuro. Mesmo que seja uma vers�o de futuro em que n�o se imagine viver.
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