� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Nunca se leu tanto sobre t�o pouco
N�o se l� mais nada, dizem. Em uma �poca multiconectada n�o sobra interesse ou aten��o para ler pouco mais do que um tu�te, uma publica��o no Facebook ou uma lista do Buzzfeed se apressam a vaticinar. Textos de jornais s�o encurtados, revistas diminuem as p�ginas editoriais e at� mesmo blogs encolhem a extens�o de suas opini�es formadas sobre tudo.
TL:DR, diz-se em ingl�s, acr�nimo para "longo demais: n�o li", uma express�o t�pica dos tempos atuais. Sua interpreta��o tanto critica o autor por seu falho poder de s�ntese quanto procura redimir o leitor pregui�oso, justificando qualquer conclus�o apressada que ele tire a partir de uma leitura diagonal.
Mas alguns fatos n�o fazem sentido nessa l�gica rasteira. A s�rie "Harry Potter", por exemplo, se estendeu por mais de 3.000 p�ginas, devoradas por leitores de todas as idades. A trilogia de "Senhor dos An�is" passou das 1.200 p�ginas. As "Cr�nicas de Gelo e Fogo", cinco calhama�os de Game of Thrones, chegam a cerca de cinco vezes esse volume. Os vampiros fosforescentes de Crep�sculo agonizaram por mais de 2.400 p�ginas e at� a sua deriva��o mais popular, a trilogia porn� soft de "50 Tons de Cinza", passou das 1.500 p�ginas.
Esses livros, ao contr�rio de cl�ssicos como "O Gene Ego�sta", "A Origem das Esp�cies" e "O Capital no s�culo 21", dos quais todos falam e praticamente ningu�m admite t�-los completado, s�o best-sellers extensamente debatidos. Muito antes de chegarem a vers�es cinematogr�ficas, cada um deles foi mais comentado do que qualquer pe�a de Sartre, Camus ou Dostoi�vski na d�cada de 1960. Uma poss�vel explica��o para tal fen�meno poderia ser que Dawkins, Darwin e Piketty sejam ensa�stas e talvez n�o haja mais tempo ou interesse para se ler profundamente alguma teoria.
Mas isso n�o explicaria por que as novas hist�rias s�o t�o populares, nem porque sua fama n�o se reflete em outras sagas extensas e complexas, como "Guerra e Paz", "Os Miser�veis" ou "Em Busca do Tempo Perdido". Enquanto Tolkien e George Martin s�o cultuados, quase n�o se fala em Tolst�i, Victor Hugo e Proust. O que J. K. Rowling tem de melhor do que Charles Dickens?
Na verdade, nada. A hist�ria de "Harry Potter" �, em termos de narrativa, bastante limitada e previs�vel. Seus personagens, mesmo surgidos da mesma cultura e ambientados no mesmo cen�rio do que os de Dickens, s�o simpl�rios. Entre as conversas de f�s, apreciadores ou curiosos que leram alguns dos livros e assistiram a boa parte dos filmes, fala-se muito mais das cenas e personagens formid�veis (como as escadas que se movem, o chap�u que escolhe a escola de cada candidato ou a loja de varinhas m�gicas) do que de eventuais sutilezas, ambiguidades ou conflitos de seus personagens.
Transferir esses coment�rios para hist�rias de outras �pocas seria t�o estranho quanto hoje algu�m comentar o cen�rio de um filme como "Rede de Intrigas", o mobili�rio do hotel de "O Iluminado", a maquiagem de Amargo Regresso, os efeitos especiais de "Sonata de Outono" ou o figurino de "O Expresso da Meia-Noite".
No entanto � isso o que acontece. Nessas e em v�rias outras obras contempor�neas, as hist�rias acontecem em constru��es artificiais, aparentemente reais, veross�meis, distantes, sem autoconsci�ncia, cr�tica social, ironia ou questionamento. R�plicas de r�plicas de r�plicas, seus universos t�m cada vez menos conte�do, por mais que sejam cada vez mais ricos em objetos.
A consist�ncia interna e complexidade dos mundos m�gicos de Hogwarts, Westeros e Terra M�dia faz com que seus leitores desenvolvam uma nova forma de intera��o com o texto. Em vez de projetar suas reflex�es para o mundo real e analisar, por meio delas, formas de compreender e alterar o mundo, gasta-se uma quantidade gigantesca de energia a imaginar detalhes de mundos imagin�rios, distantes demais para criarem conflitos.
Nesses mundos, o universo � limitado e previs�vel, e n�o sobra para o leitor mais do que absorv�-lo em seus m�nimos detalhes. A met�fora e a descri��o do mundo s�o plastificadas e transformadas em fetiche, prendendo o leitor a uma redoma de conte�do e estimulando-o a saber cada vez mais sobre cada vez menos.
Ao contr�rio das hist�rias de Alexander Soljen�tsin, o mundo das "sagas" de fantasia � sanit�rio como um parque tem�tico. Seu universo artificial � apresentado com a mesma l�gica interna dos discursos pol�ticos, das seitas religiosas e das campanhas de marketing. Cabe a seus consumidores a passividade e bom comportamento dos frequentadores da decora��o de natal em um shopping center, em que tudo � surpreendente e nada � verdadeiramente novo.
"50 Tons de Cinza" � um bom exemplo. Surgida como "fan fiction", fic��o criada em cima dos personagens e universo de "Crep�sculo", que por sua vez � um pastiche idealizado e assexuado de hist�rias de vampiros, � banal e previs�vel. Os rituais de sexo e domina��o dos livros da s�rie s�o acordados "contratualmente" por seus protagonistas; e neles, parece haver mais de fetiche e descri��o de processos do que alguma esp�cie de prazer, como uma dan�a coreografada. Pl�stica e est�ril, a obra � muito diferente de outros livros de apelo er�ticos e sucesso popular de outras �pocas, como os livros de Henry Miller e Ana�s Nin. Estranho o mundo em que h� sadomasoquismo e domina��o politicamente corretos, uma vez que regidos por contrato.
Nos reality shows, com�dias de stand-up, programas de audit�rio, coment�rios pol�micos, jornalismo sensacionalista e teatro de improviso, cabe aos participantes improvisar o material imediato . Esse improviso, ao contr�rio do teatro �pico de Bertolt Brecht, n�o tem a fun��o de contornar qualquer tipo de censura, estimular a reflex�o ou desenvolver algum tipo de postura cr�tica. A impress�o que se tem � que sua inten��o � dar algo para manter o p�blico ocupado a ponto que n�o fa�a perguntas inc�modas.
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