� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
O que a Revolu��o Industrial n�o resolveu
Imagine que, por uma tecnologia que n�o cabe a esta modesta coluna detalhar, um grupo de cientistas fosse capaz de recuar 250 anos no tempo e trazer um adulto diretamente de 1765 para o nosso cotidiano. Para tornar o experimento mais preciso, esse indiv�duo seria buscado no lugar com o maior �ndice de desenvolvimento tecnol�gico da �poca: o cora��o do Imp�rio Brit�nico.
Para facilitar a hist�ria, chamemos o visitante de John. Uma das primeiras precau��es que os cientistas teriam que tomar seria o de proteg�-lo do choque cultural. Para isso, psic�logos e historiadores teriam preparado um apartamento com todas as comodidades de sua �poca, isolando-o de potenciais amea�as desconhecidas ao mesmo tempo que o emporcalhavam com as mazelas conhecidas, de mofo � fuma�a de lareira e lampi�o. Tudo pronto, o experimento come�aria.
Mesmo com todas as precau��es, provavelmente a primeira rea��o dele seria de um gigantesco espanto e incredulidade. Mas isso j� seria esperado. Culto para os padr�es de sua �poca, o mais pr�ximo de uma fantasia t�cnica que Mr. John teria lido seriam as Viagens de Gulliver. As ideias de Isaac Newton j� tinham sido assimiladas, mas Goethe ainda n�o tinha influenciado o mundo com sua curiosidade, Darwin nasceria em 50 anos, J�lio Verne e H. G. Wells ainda levariam mais de um s�culo para escrever suas hist�rias. A ci�ncia ainda n�o era nem fic��o.
Assumindo que a transi��o tenha ocorrido sem problemas, aos poucos o cotidiano seria revelado ao visitante. Vindo de uma �poca em que a Revolu��o Industrial mal havia come�ado, tudo para ele seria fant�stico, m�stico, m�gico, assombrado. As ind�strias t�xteis, metal�rgicas e qu�micas ainda n�o tinham sido inventadas, o que o deixaria perplexo at� diante de um pano de ch�o.
Da mesma forma que hoje vive-se muito bem sem saber como funcionam as antenas de transmiss�o de r�dio, abatedouros de frangos e torres de controle a�reo (o que, em alguns casos, � uma b�n��o, pois o conhecimento talvez deixasse muitos com medo de usar tais tecnologias), o mundo seria revelado para Mr. John como se fosse uma mistura de magia com realismo fant�stico.
Aos poucos ele teria contato com o mundo exterior. Escolas, tribunais, bancos, consult�rios m�dicos e igrejas seriam fac�limas de reconhecer. Reda��es de jornais, rodovi�rias e aeroportos provavelmente n�o chamariam sua aten��o. "Mudam as formas de transporte, mas os processos continuam os mesmos", pensaria.
Celulares e tablets talvez n�o o fascinassem tanto quanto obtura��es dent�rias, comprimidos multivitam�nicos, fornos de micro-ondas e c�maras fotogr�ficas. Por todo lugar que ele olhasse, sistemas complexos de fabrica��o e log�stica criavam a mat�ria-prima desse futuro m�gico, cheio de pl�stico, concreto, a�o e papel por toda parte, em todas as espessuras, e com tantas cores. Ah, admir�vel mundo novo que abriga tais pessoas.
Depois de algumas semanas tentando assimilar as novidades do 21� s�culo, ele provavelmente pararia de pensar na natureza das coisas e as aceitaria sem grandes questionamentos. Da mesma forma com que hoje raramente algu�m se impressiona com o trabalho de marcenaria de um piano ou de qu�mica em uma tinta, ele deixaria estar, maravilhado com o engenho e arte da mente humana. Que vida incr�vel teriam os tataranetos dos tataranetos de seus tataranetos.
Uma coisa, no entanto, n�o faria sentido para seus par�metros. A princ�pio ele teria acreditado que deveria ser um erro de percep��o. Mas o fato persistia, incomodando e complicando sua compreens�o. Sempre que a oportunidade surgia para fazer a pergunta que o incomodava, por educa��o ele a deixava de lado, com medo de ser indelicado. Um dia n�o resistiu e perguntou:
- Por que, com tanta tecnologia, voc�s ainda tem gente pobre?
No dia seguinte quando acordou, tudo havia mudado. Seus anfitri�es o tinham devolvido para o s�culo 18. Atordoado e arrependido, Mr. John passou o resto de sua vida tentando entender o que havia ocorrido. Ser� que tinha descoberto algum segredo estrat�gico? Ou que tinha causado algum conflito com sua pergunta?
Anos mais tarde, sem contato algum com seus antigos anfitri�es, John se contentaria com duas poss�veis hip�teses para sua volta repentina ao passado: a vergonha deles em deixar de lado uma quest�o essencial e a esperan�a de que, de alguma forma, o visitante mudasse a situa��o enquanto ainda era novidade.
A corrida tecnol�gica iniciada no s�culo 18 tinha um desafio bastante claro: a efici�ncia dos processos industriais. Nesse aspecto, � ineg�vel que tenha sido bem-sucedida. Ningu�m pediu a ela que fosse justa ou sustent�vel. Essas quest�es vieram depois. Est� na hora de criar novos processos que as tenham como meta principal, caso contr�rio n�o adianta chorar mais tarde.
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