� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
O triste fim do sonho hippie
Nos tempos da Internet movida a lenha o mundo digital parecia o espa�o sideral. Ou o oeste selvagem. Ele era uma "nova fronteira", ambiente perfeito para concretizar as fantasias que o mundo real teimava em limitar. Em 1996, quando a web comercial come�ou a engrenar e chamar a aten��o das autoridades, John Perry Barlow, antigo letrista da banda de rock Grateful Dead, escreve sua Declara��o de Independ�ncia do Ciberespa�o.
Seguem alguns trechos do manifesto do Paulo Coelho deles:
"Governos do Mundo Industrial, gigantes mon�tonos de carne e a�o, eu venho do espa�o cibern�tico. Em nome do futuro, pe�o a voc�s do passado que nos deixem em paz. Voc�s n�o s�o bem-vindos entre n�s."
"N�o temos governos eleitos, nem � prov�vel que tenhamos algum. Por isso eu me dirijo a voc�s sem autoridade maior do que aquela com a qual a liberdade sempre fala. Eu declaro o espa�o social global que estamos construindo um lugar independente das tiranias que voc�s tentam nos impor. O espa�o cibern�tico est� fora de suas fronteiras."
"Voc�s n�o sabem nada da nossa cultura, nossa �tica, ou os c�digos falados que j� deram a nossa sociedade mais ordem do que poderia ser obtida por qualquer das suas imposi��es."
"Voc�s alegam que existem problemas entre n�s que voc�s precisam resolver. Usam essa alega��o como desculpa para invadir nossos territ�rios. Muitos destes problemas n�o existem. Onde existirem conflitos reais, onde existirem erros, iremos identific�-los e resolv�-los por nossos pr�prios meios."
"Nosso mundo � diferente do seu. Declaramos nossos egos virtuais imunes � sua soberania, mesmo se continuarmos a aceitar as suas regras sobre n�s."
Curiosamente a declara��o � assinada em Davos, sede do F�rum Econ�mico Mundial. � interessante pensar como, 19 anos mais tarde, exatamente o mesmo texto poderia ser usado contra os empreendedores "libert�rios" da rede, que tampouco foram eleitos e n�o conhecem os ambientes que invadem. Sua cultura e vis�o de mundo � imposta junto com as tecnologias que vieram resolver "problemas" de que ningu�m sabia.
Ao defender este ideal aparentemente admir�vel, os novos magnatas reproduzem algumas das caracter�sticas mais arcaicas da sociedade americana, especialmente as derivadas da amarga heran�a da escravatura. Sua vis�o ut�pica da Calif�rnia depende de uma cegueira volunt�ria para os outras caracter�sticas da regi�o: racismo, pobreza e degrada��o ambiental.
Ironicamente, em um passado n�o muito distante, os intelectuais e artistas da �rea eram cr�ticos passionais dessas mesmas quest�es.
O mundo digital � esquizofr�nico desde o ber�o. Nascido de um casamento improv�vel entre a boemia cultural de S�o Francisco e as ind�strias de tecnologia de ponta do Vale do Sil�cio, h� nele um pouco do esp�rito livre dos hippies e do empreendedorismo dos yuppies. A mistura s� n�o implode por causa de uma profunda f�, quase "new age", no potencial emancipador das novas tecnologias da informa��o. Na utopia digital, afinal, todo mundo pode ser t�o rico quanto descolado. Elon Musk que o diga.
Foi o fasc�nio promovido pela Eletr�nica e amplificado pela filosofia panflet�ria de Marshall McLuhan (com seu sonho de uma aldeia global cujos meios poderiam transformar as mensagens) que fez os velhos hippies abra�arem a ideologia do capitalismo selvagem daqueles que at� h� pouco eram seus inimigos.
Ignorando pol�ticas de cortes sociais, quem defendia direitos humanos foi hipnotizado pelo entusiasmo com as novas tecnologias da informa��o. Elas capacitariam o indiv�duo e aumentariam sua liberdade pessoal. No processo, aproveitariam para diminuir o poder do Estado.
N�o se pode subestimar o poder da hipnose tecnol�gica. Os mesmos ativistas que durante a d�cada de 1960 foram os pioneiros no panorama pol�tico e cultural, lan�ando campanhas contra o militarismo, a desigualdade, o consumismo irracional e a polui��o, hoje usam alegremente seus eletr�nicos de �ltima gera��o, subsidiados por investimentos militares, cujas f�bricas degradam o ambiente e escravizam os oper�rios do mundo pobre.
Os mesmos hippies que sonhavam com uma sociedade sem propriedades particulares ou carros hoje aguardam ansiosamente seus ve�culos aut�nomos e casas inteligentes. O povo comunit�rio que sonhou com a aldeia global n�o se incomodou em v�-la transformada em um mercado globalizado. N�o demorar� para ver quem defendia a liberdade de express�o falar em defesa da vigil�ncia.
Parece Revolu��o dos Bichos, mas a distopia � real. O pensamento californiano retira a sua popularidade da pr�pria ambiguidade de seus preceitos. Como em Atenas, os escravos n�o precisam ser eliminados. Basta que fiquem escondidos.
Ou que se percebam como volunt�rios, como o quase bilh�o de pessoas que alimentam diariamente o Facebook com seu �nico real patrim�nio. Ou como os artes�os digitais, que em troca de "autonomia" sobre o ritmo e local de trabalho, tem horas mais longas e prazos mais curtos do que as gera��es que os precederam, sem direito a f�rias ou a qualquer estabilidade. N�o lhes sobra alternativa a n�o ser buscar no trabalho a principal rota para a auto-realiza��o. � a �nica devo��o para qual a maioria tem algum tempo, portanto � bom que satisfa�a.
Ao pregar uma salada bizarra de anarquismo hippie com liberalismo econ�mico temperada com determinismo tecnol�gico, muitos deixam de perceber a triste ironia em que o sonho digital se tornou. Em vez de buscar a emancipa��o da humanidade, esta forma de determinismo tecnol�gico s� tende a aumentar a infelicidade e a segrega��o.
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