� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Ferramentas, tecnocracia e tecnop�lio
Desde a idade da pedra polida que v�rias culturas s�o definidas com base em sua rela��o com a tecnologia. H� cerca de 25 anos, o cr�tico cultural americano Neil Postman escreveu o livro "Tecnop�lio: a Rendi��o Da Cultura � Tecnologia", em que mostrava que essa classifica��o de sociedades as divide em tr�s categorias: culturas que utilizam ferramentas, tecnocracias e "tecnop�lios". Segundo ele, os tr�s tipos ainda poderiam ser encontrados no planeta, embora o primeiro estivesse em extin��o.
At� o s�culo 17, todas as culturas eram do primeiro tipo. A principal varia��o entre elas era o tipo de ferramenta dispon�vel e o uso que se dava a ela. Nessas sociedades, ferramentas eram acess�rios comuns. N�o importa o quanto uma roda fosse importante para os habitantes do neol�tico ou uma prensa de tipos m�veis fosse para a sociedade na �poca de Gutemberg, elas nunca chegaram a ser importantes a ponto de serem cultuadas.
Nos raros casos em que uma delas era transformada em �cone, como na cruz crist�, o uso era simb�lico, indireto. Em todas as varia��es dessa religi�o, o antigo instrumento de tortura servia para simbolizar amor, sofrimento e perd�o. N�o tenho conhecimento de uma seita que use crucifixos para cultuar sua efici�ncia como ferramenta de puni��o.
At� a revolu��o industrial, ferramentas tinham poucas fun��es, claramente estabelecidas. Elas poderiam ser usadas para resolver um problema espec�fico da vida f�sica, como uma faca ou arado. Elas tamb�m poderiam servir para o entretenimento e desenvolvimento da sociedade, arte e cultura, como pinc�is ou instrumentos musicais. Ferramentas at� poderiam ser utilizadas como objeto ritual�stico, mas sem interferir em seu significado.
Um tur�bulo, aquela bolinha prateada de onde sai o incenso em missas cat�licas � um exemplo desse terceiro tipo de ferramenta.
Os inventores de todos esses objetos, em sua maioria an�nimos, procuravam efici�ncia em seus resultados, mas n�o imaginariam sua interfer�ncia na dignidade ou integridade dos processos em que trabalhavam. A cultura dirigia a inven��o e o uso.
As ferramentas dessa �poca sempre estiveram integradas � cultura de sua aplica��o. Guiadas por h�bitos, costumes, castas e cren�as, essas sociedades n�o imaginariam que ferramentas pudessem estabelecer diferen�as. A pr�pria ideia de sua posse era, para muitos grupos, considerada estranha.
Com a revolu��o Industrial surge a ideia da tecnocracia, uma organiza��o social em que as ferramentas e seus processos desempenham um papel central na vis�o de mundo. Todas as coisas precisam estar organizadas de forma que deem espa�o para seu desenvolvimento e seu principal valor, a efici�ncia. Nessas sociedades, a ferramenta n�o est� mais integrada � cultura. Pelo contr�rio, ela busca combater seus valores na tentativa de tornar-se o elemento central.
Com a tecnocracia, valores �ticos e intelectuais s�o separados. As pessoas passam a acreditar que conhecimento � poder, e que, portanto, n�o deve ser compartilhado. Seguindo o mesmo racioc�nio, a pobreza, que at� ent�o tinha sido infort�nio e responsabilidade de todos, � transformada em incompet�ncia.
No s�culo 19, a tecnocracia estava bem encaminhada. Uma de suas maiores inven��es foi a pr�pria ideia de inven��o, de que se algo poderia ser feito, deveria ser feito. Junto com ela florescem novos valores: objetividade, efici�ncia, especializa��o, padroniza��o e mensura��o.
Uma ideia � como uma l�mpada de rua. Para quem est� s�brio, pode servir como ilumina��o. S� para os b�bados que ela serve de apoio. O fasc�nio pela tecnologia, na forma de Tecnocracia, desmontou tradi��es, criou liberdades e reorganizou a sociedade. Mas ele tamb�m acelerou o mundo e transformou o tempo em um advers�rio que poderia - e deveria - ser derrotado.
Mas isso n�o seria o fim da hist�ria. Segundo Postman, o pior viria na forma de "tecnop�lio", a ditadura da tecnocracia. Ele resolveria de vez o conflito entre moral e efici�ncia. Essa mudan�a n�o aconteceria por decreto, como tentaram diversos regimes comunistas. N�o adiantava tornar os velhos costumes ilegais, imorais ou impopulares. O ideal seria deix�-los invis�veis e, dessa forma, irrelevantes.
O maior produto de um tecnop�lio � a informa��o. Ela serviria para resolver os problemas do mundo, por mais que a fome e a guerra dificilmente possam ser justificados por falta dela.
A liga��o entre informa��o, raz�o e utilidade come�a a perder a legitimidade em meados do s�culo 19 com o tel�grafo. Foi com ele, e n�o com a Internet, que surgiu a ideia de informa��o livre de contexto, desvinculada de prop�sito, dirigida a ningu�m em particular, em grande volume e velocidade, desconectada de significado. Simplesmente informa��o.
Com o tecnop�lio, a m�quina se diviniza. Seu julgamento, exato e preciso, � considerado superior ao ju�zo humano que, amb�guo e complexo, n�o deve ser confi�vel. A subjetividade se torna um obst�culo. A incerteza, um defeito. O que n�o pode ser medido n�o existe. Ou n�o tem valor. O progresso humano � substitu�do pelo tecnol�gico. O objetivo deixa de ser reduzir a ignor�ncia, a supersti��o e o sofrimento, mas atender �s exig�ncias da m�quina.
O maior perigo de confiar assuntos sociais, morais ou pol�ticos para um burocrata, seja humano ou tecnol�gico, � sua indiferen�a a qualquer conte�do fora de sua �rea de especialidade. Ambientes em que a efici�ncia � irrelevante, como a cidadania, educa��o ou relacionamentos, s�o ignorados. Quando aparecem situa��es que demandam flexibilidade nas regras ou que n�o possam ser resolvidas por processos, o resultado costuma ser desastroso.
Postman morreu em 2003. � uma pena. Gostaria de ouvir o que algu�m como ele teria a dizer a respeito do mundo curioso em que vivemos em fun��o dos escravos mec�nicos que deveriam nos servir.
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