� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Frankenstein e o Admir�vel Mundo Novo
A hist�ria de Victor Frankenstein e de sua criatura foi transformada no mito liter�rio caracter�stico dos perigos trazidos por novas tecnologias. Sua autora, Mary Shelley, dificilmente usaria o termo, que n�o era muito conhecido na �poca. Escrito em 1816, em meio aos conflitos promovidos pelos trabalhadores que perderam seus empregos para as m�quinas da Revolu��o Industrial, Frankenstein reflete o medo ambivalente da inova��o e da resist�ncia de uma turba enfurecida que maltrata o "monstro". N�o pode ser simplificado como uma obra contr�ria � ci�ncia ou ao ideal do progresso.
Frankenstein est� mais para o elogio da Ci�ncia e cr�tica � ignor�ncia das massas do que o contr�rio. O gigante costurado em uma oficina a partir de peda�os de cad�veres n�o � t�o diferente das m�quinas fant�sticas de J�lio Verne. � curioso que tenha sido escolhido, na imagina��o popular, para simbolizar os riscos da ci�ncia futurista e da tecnologia de ponta. O apelido "frankenfood" dado aos alimentos geneticamente modificados, � t�pico.
A maioria das leituras de Frankenstein faz uma associa��o direta, simplificada e dogm�tica entre tecnologia, autonomia e monstruosidade, empobrecendo o personagem e a discuss�o derivada dele. Victor Frankenstein est� longe de ser perfeito. Retratado como um cientista louco, ego�sta, alheio ao sofrimento que sua cria��o pode gerar, ele guarda muitos elementos em comum com os admirados empreendedores do Vale do Sil�cio.
Como os cientistas do Projeto Manhattan ao construir a bomba at�mica, sua curiosidade e desafio intelectual �, para eles, maior e mais importante do que as eventuais quest�es �ticas que sua cria��o pode gerar. Para evitar cr�ticas, assumem o papel de t�cnicos, ausentando-se do debate. O m�dico nazista Josef Mengele fazia o mesmo em seus experimentos nos campos de concentra��o. Seu projeto era est�tico, abstrato, desumano.
A personalidade fria de Frankenstein guarda muitas semelhan�as com outro megaloman�aco da fic��o, Dr. Fausto. Entediado e deprimido com os limites de sua pesquisa, apela para o dem�nio e faz com ele uma barganha, trocando sua alma por todo o conhecimento do mundo.
A ambival�ncia humana com rela��o � tecnologia e o desafio aos dogmas estabelecidos por tradi��o e religi�o � um tema tradicional. Prometeu, a inspira��o de tantos frankensteins, � um tit� da mitologia grega que traz para a humanidade o fogo dos deuses, sofrendo com isso a dana��o eterna. No folclore judaico, o "Golem" � um ser antropom�rfico, criado magicamente a partir de mat�ria inanimada. Seu criador fica dividido entre o fasc�nio pela criatura e o medo de que ela se rebele.
A industrializa��o amplificou o medo primitivo. No filme Metr�polis, de 1926, trabalhadores industriais agem como pe�as de um sistema, escravos de m�quinas que sustentam uma cidade "superior", em que vive uma classe ociosa. O monstro dessa vez � uma m�quina, alimentada com sacrif�cios humanos.
Anos mais tarde o cientista louco � transportado para o computador, tem�vel c�rebro eletr�nico. Em 1956, o filme "Planeta Proibido" antecipa o medo que "2001, Uma Odisseia No Espa�o" tornar� popular: que sistemas inicialmente ben�ficos tornem-se perigosos por falhas derivadas de sua pr�pria complexidade.
Na d�cada de 1980 o Golem � transportado para os androides de Blade Runner. Perigos�ssimos e amorais, esses frankensteins s�o revividos em "Exterminador do Futuro" e "Robocop".
N�o demora para o conflito chegar � Internet. Em 1988, o livro Neuromancer cria os termos "ciberespa�o" e "matrix", tentando dar forma ao monstro invis�vel da Internet.
Na virada do s�culo matrix vira filme, consolidando o medo da tecnologia e seu poder de influ�ncia em uma realidade virtual hipn�tica. Como Metr�polis, � um mundo de dois n�veis, dependente de escravos para sustentar uma hegemonia validada pela ilus�o tecnol�gica. Sua maior diferen�a � que a elite n�o � mais composta por seres humanos, mas por m�quinas.
Dois livros ingleses escritos no s�culo 20 alertam para os perigos de hoje. O mais comentado � "1984". Escrito por George Orwell logo depois da Segunda Guerra Mundial, impressionado pelo totalitarismo sovi�tico, ele retrata o medo de um "Grande Irm�o" (Big Brother), que vigia e controla a todos, transformando a sociedade em uma pris�o. Muito � dito e feito para evitar esse cen�rio, principalmente quando se descobre o poder e interfer�ncia de ag�ncias governamentais de todo o mundo sobre a privacidade na rede.
A outra hist�ria � "Admir�vel Mundo Novo". Escrita em 1931 por Aldous Huxley, que tinha visitado a f�brica de Henry Ford nos Estados Unidos, ela buscava criticar a industrializa��o e padroniza��o crescente dos processos manufaturados. O ambiente burlesco e higi�nico que ela retrata pode ser mais perigoso do que qualquer ditadura.
Em uma era de tecnologia avan�ada, Admir�vel Mundo Novo mostra que a devasta��o cultural ter� origem mais prov�vel no inimigo com rosto sorridente, muito mais perigoso do que de algu�m cuja presen�a inspire medo, suspeita ou raiva. Na profecia huxleyana, o Grande Irm�o n�o precisa ver seus s�ditos. Eles mesmos vigiam, registram e quantificam a si pr�prios. N�o h� necessidade de guardas, port�es ou Minist�rios da Verdade quando a popula��o, cheia de p�o e circo, � distra�da em um ambiente de entretenimento perp�tuo, que transforma cada membro da plateia em protagonista.
Qualquer dissid�ncia nesse ambiente � considerada hist�rica e logo ignorada. Aaron Swartz, Edward Snowden e Julian Assange tiveram, como o Unabomber, seus 15 minutos de fama. Logo ser�o ignorados em nome da pr�xima comodidade ou entretenimento.
As institui��es sociais n�o foram preparadas para reconhecer uma gaiola de vidro. � f�cil identificar e agir contra atrocidades de grupos como o Boko Haram ou o Estado Isl�mico, mas o que fazer quando n�o houver clamores a ouvir? A quem se queixar quando o discurso pol�tico � dissolvido em risos? Qual � o ant�doto para uma cultura drenada por ironia e par�dia?
Os fil�sofos cl�ssicos n�o prepararam a civiliza��o para este cen�rio. Seu mundo � mais simples, objetivo e dicot�mico. Suas advert�ncias, dirigidas contra ideologias claramente formuladas. A nova ideologia, que transforma cidad�os em usu�rios, � imposta socialmente na forma de entretenimento. N�o houve debate nem consenso para chegar a ela. N�o h� controle nem oposi��o, apenas ader�ncia.
A Internet �, n�o se pode esquecer, apenas mais um conjunto de m�quinas. Ao contr�rio das que a precederam, ela estabeleceu uma rela��o de codepend�ncia t�o profunda com a civiliza��o que n�o pode ser desligada sem provocar um colapso no modo de vida contempor�neo.
Mas isso n�o significa que se deva submeter ao sacrif�cio humano demandado pela gan�ncia de seus controladores. Somente atrav�s de uma profunda consci�ncia da estrutura e dos efeitos da interface h� esperan�a de ganhar independ�ncia sobre o mundo ilus�rio que � apresentado.
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