� professor-doutor de Comunica��o Digital da ECA da USP. Trabalha com internet desde 1994. Hoje � consultor em inova��o digital.
Dois livros para compreender o mundo de hoje
Confesso n�o ser muito f� do Carnaval. Para mim, o melhor da semana que antecede o real come�o do ano � a pausa que dura de cinco dias a uma semana. O telefone n�o toca, ningu�m atormenta e � poss�vel se dedicar a uma boa leitura por horas a fio.
Por isso aproveito o espa�o dessa coluna, em uma semana que ningu�m as l�, para falar de dois livros que li no ano passado. Eles tratam de economia e geopol�tica. Seu escopo desvia um pouco da minha �rea, mas ao ajudar a explicar os loucos anos em que vivemos, eles tornam a observa��o de tend�ncias digitais uma tarefa um pouco menos �rdua.
"O Capital no s�culo XXI" - Thomas Piketty, Ed. Intr�nseca. 672 p�ginas. Nas �ltimas d�cadas, muitos come�aram a perceber que o capitalismo, em seus moldes tradicionais, criava mais problemas do que tinha se proposto a solucionar. O maior deles, a concentra��o de renda.
Ao tratar do tema, Thomas Piketty passou de pesquisador quase desconhecido a celebridade instant�nea. Sua fama � merecida. O calhama�o de quase 700 p�ginas � um soco no est�mago, que dever� se tornar um cl�ssico na �rea. Diferente das obras de Marx e Keynes, este � mais emp�rico do que especulativo. Ele contou com a Internet e o acesso a dados de v�rios governos ao longo de 15 anos, gerando uma base de dados gigantesca que mostra o fluxo de riqueza e produtividade pelo planeta nos �ltimos tr�s s�culos.
A pol�mica do livro est� em sua afirma��o categ�rica que o mundo est� voltando para a sociedade patrimonial do s�culo 19, aquela dos romances de Balzac e Jane Austen, em que a economia � dominada pelo patrim�nio familiar, boa parte dele conquistado por presentes e heran�a.
Para Piketty, a desigualdade vem crescendo abruptamente desde a �ltima gera��o, e se concentrando em um pequeno grupo que vive do conforto de bens herdados ou ganhos enquanto o resto sofre para garantir um n�vel m�nimo de sobreviv�ncia. Segundo ele –e os dados s�o t�o extensos, de fontes t�o diversas, que � muito dif�cil question�-los– as d�cadas que sucederam a Primeira Guerra Mundial n�o indicaram o caminho para o equil�brio por crescimento do bolo econ�mico, mas um raro intervalo entre a desigualdade da Belle �poque e a contempor�nea.
Sua teoria desafia algumas das "verdades" repetidas extensivamente no discurso das economias ocidentais: que o crescimento e produtividade tornam cada gera��o melhor do que a anterior; que a desigualdade tende a se estabilizar e diminuir naturalmente; e que boa parte da riqueza contempor�nea � resultado de m�rito individual. Isso � mais exce��o do que regra.
Para quem se assusta com econom�s ou com discursos panflet�rios, um al�vio. H� pouca matem�tica no livro, que tampouco demanda conhecimentos de economia. Apoiado em evid�ncias, ele evita o discurso ideol�gico, buscando contribuir com fundamentos para um debate p�blico essencial.
� leitura obrigat�ria para quem se preocupa em entender e prosperar nos tempos contempor�neos, principalmente para os candidatos a empreendedores, que suam a camisa diariamente para que suas empresas cres�am, ainda que dependentes de clientes ou investidores mimados, que chegaram � posi��o que ocupam por um conjunto de relacionamentos e coincid�ncias desde o ber�o.
"As Origens da Ordem Pol�tica" - Francis Fukuyama, Ed. Rocco. 592 p�ginas. Como o capitalismo, a democracia tamb�m parece estar em crise. A explos�o do fundamentalismo no norte da �frica e Oriente M�dio, o sucesso da linha dura chinesa, o retrocesso truculento da R�ssia, a influ�ncia dos grupos de interesses no governo dos EUA e a corrup��o generalizada em pa�ses do terceiro mundo podem dar a impress�o de que ela esteja com os dias contados. N�o � verdade. O prest�gio das institui��es democr�ticas � tamanho que obriga ditadores a encenar elei��es e manipular a m�dia para fingir que s�o democratas e buscar alguma legitimidade.
"A fal�ncia da Democracia � menos uma quest�o conceitual do que de execu��o. Se as institui��es de um pa�s s�o fracas, corruptas, incapazes ou ausentes, n�o h� governo que se sustente. A paix�o das ruas e redes pode ser suficiente para gerar primaveras e mudan�as de regime, mas n�o se sustentar� sem um processo demorado, caro, trabalhoso e dif�cil de constru��o institucional".
A opini�o � de Francis Fukuyama, autor do controverso livro "O Fim da Hist�ria", que volta com uma pesquisa detalhada em dois tomos. Este que eu recomendo trata da evolu��o das institui��es, dos homin�deos � Revolu��o Francesa. O segundo ainda n�o terminei de ler, quem sabe neste Carnaval?
O livro defende um ponto que parece �bvio, mas que muita gente esclarecida teima em aceitar: que governos de sucesso s�o, como alguns pa�ses n�rdicos, simultaneamente poderosos, restritos por leis e obrigados a prestar contas. Simples assim.
O radicalismo crescente, vis�vel nos absurdos que circulam nas redes, na imprensa e nos livros, mostra uma cegueira institucional que seria curiosa se n�o fosse tr�gica, e que se reflete em uma cren�a quase m�stica de que um dia viveremos em um mundo sem governos. Isto at� hoje n�o se mostrou poss�vel.
Surdos � raz�o, movimentos digitais contempor�neos atualizam o velho ide�rio "hippie" de comunidade sem gestor, avessa � presen�a do Estado. Revolucion�rios de esquerda repetem o discurso anarquista do s�culo 19, acreditando na dissolu��o do Estado como fator necess�rio e suficiente para o surgimento de uma utopia popular, sem levar em conta os regimes totalit�rios que surgiram dos destro�os de todos esses experimentos sociais.
Neoliberalistas e reacion�rios, por sua vez, sonham com governos m�nimos ou inexistentes, regulados apenas pelas for�as do mercado, aparentemente sem se dar conta de que tais para�sos de taxa��o m�nima j� existem na �frica subsaariana, e que, em vez de desenvolver o empreendedorismo, eles comprometeram qualquer investimento em infraestrutura, levando seus pa�ses � fal�ncia.
Todos tem o direito de se queixar de burocracias e cart�rios, pol�ticos corruptos e defesas de privil�gios. Mas a reforma deve se dar por dentro das institui��es. Ignor�-las ou contorn�-las � uma sa�da de emerg�ncia, e costuma deixar a situa��o ainda pior. Muitos assumem a exist�ncia do governo como uma condi��o "natural", mal necess�rio, se esquecendo de como � dif�cil cri�-lo. E de como � importante mant�-lo.
A situa��o no Iraque, S�ria e Afeganist�o n�o deixa d�vidas de que n�o basta simplesmente eliminar o ditador. A for�a de movimentos terroristas como o grupo autointitulado Estado Isl�mico vem da mesma origem que conhecemos bem nos ambientes do tr�fico: lugares de poder p�blico inexistente, em que senhores tribais criam condi��es m�nimas para a popula��o carente.
De onde vieram as institui��es? Que for�as as criaram, sob que condi��es se desenvolveram? Essas e outras quest�es s�o respondidas neste livro, com exemplos t�o diversos quanto a China e a Hungria, em uma hist�ria grandiosa de uma das mais belas conquistas humanas: a forma��o do Estado, livre das alian�as tribais e familiares, e sua luta contra elites poderosas que buscam sequestr�-lo e poluem o mundo com desinforma��o.
Os dois s�o enormes. Tem mais do que o dobro das p�ginas de um "Harry Potter" ou um "Jogos Vorazes". Juntos, tem quase o tamanho da saga do "Senhor dos An�is". Suas hist�rias, intrigantes e ver�dicas, s�o igualmente fascinantes. E ajudam a atribuir sentido ao enredo de realismo fant�stico do carnavalesco mundo contempor�neo.
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