Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Platão foi o maior, pois viu que o problema não é a existência de Deus algum

Atos ou instituições humanas mutáveis não são mais do que nuvens que passam

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O que haveria em disciplinas como psicanálise, ciências sociais e positivismo lógico que poderíamos considerá-las causadoras de niilismo, ou seja, da negação de que exista qualquer moral que não seja um salve-se quem puder?

Ilustração para coluna de Luiz Felipe Pondé de 26 de dezembro de 2022
Ilustração para coluna de Luiz Felipe Pondé de 26 de dezembro de 2022 - Ricardo Cammarota

O niilismo —termo derivado de "nihil" em latim, que significa nada— é o conceito supremo da modernidade. Nada existe de valor a não ser invenções humanas que passam como nuvens passam —e dinheiro, claro, é o mais permanente de todos os valores modernos. Portanto, a rigor, somos livres para fazer o que quisermos, já que, ao fim e ao cabo de tudo, resta nada, apenas poeira cósmica.

Difícil esta questão, não só para você que talvez não esteja familiarizado com o vocabulário filosófico, mas para qualquer pessoa que tenha estômago fraco. Mas voltemos para a pergunta inicial e indiquemos quem a está fazendo.

Por que a psicanálise, as ciências sociais e o positivismo lógico seriam causadores de niilismo?

A psicanálise reduziria tudo a um draminha psicológico —inclusive a busca do bem ou do mal. As ciências sociais, por sua vez, reduziriam tudo às forças e relações sociais, inclusive a busca do bem ou do mal. O positivismo lógico reduziria tudo ao jogo de palavras numa frase, ou seja, tudo é puro efeito de linguagem, inclusive a busca do bem ou do mal.

Os positivistas lógicos, filósofos analíticos da linguagem, são descritos pela filósofa irlandesa, radicada na Inglaterra, Iris Murdoch (1919-1999) como os "mercadores da semântica" por brincarem com coisas sérias como a validade do bem, como se este fosse mero jogo de palavras numa frase dita por qualquer um.

Aliás, a questão posta na abertura desta coluna é dela mesma. Na sua coletânea "Existentialists and Mystics: Writings on Philosophy and Literature", ou existencialistas e místicos, escritos sobre filosofia e literatura, editado por Peter Conradi —sem tradução no Brasil—, a filósofa e escritora enfrenta, entre outros temas, o existencialismo francês e seu niilismo a partir dos anos 1950.

Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus e Gabriel Marcel, todos existencialistas, ao reduzirem a atribuição de sentido da vida a mera subjetividade, faziam de qualquer inquietação moral humana uma terra arrasada.

Se tudo é subjetivo, nada vale mais do que uma tara qualquer. Se tudo é social, nada vale mais do que uma mentira institucionalizada. Se tudo é jogo de linguagem, nada vale mais do que frases de efeito.

Iris Murdoch não era religiosa, mas sabia que a redução da moral ao mundo psíquico, social ou linguístico, como fenômenos derivados das fantasias ou obsessões, imposições sociais ou jogos de palavras, abriria as portas para o vale tudo como decorrência. Resumindo a ópera: o conteúdo dessas três disciplinas implica a negação de todo e qualquer fundamento. Tudo que o homem inventa é uma nuvem de nadas.

Não por acaso, ela considerava Platão o maior de todos os filósofos e admirava a metafísica como "guia para a moral", título de uma outra obra sua, "Metaphysics as a Guide to Morals", metafísica como guia para a moral, também sem tradução. No Brasil, temos traduzido umas das suas obras capitais, "A Soberania do Bem", pela editora da Unesp.

Platão foi o maior porque entendeu que o problema não é a existência de Deus algum, mas uma vida pautada pelo bem como necessário. Atos ou instituições humanas mutáveis não são mais do que nuvens que passam. O bem, o amor, a generosidade, a humildade, o cuidado, a sinceridade é que importam.

E se alguém perguntar "afinal, importam para quê, se somos imperfeitos e efêmeros"? A rigor, não importam para nada. Por isso mesmo importam tanto: são um fim em si mesmos. Para Iris Murdoch, mesmo sem Deus, a necessidade do bem permanece de pé porque essa necessidade é que nos mantém de pé.

Como diz Gabriel Marcel, de todos os existencialistas, aquele que talvez ela achasse menos niilista, sem a atenção ao mistério, típico ato de nossa civilização desenraizada, sem vínculos com a inquietação do ser, "tenderemos todos a nos tornar burocratas". Burocratas do nada.

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