O amor é uma doença em processo de erradicação no mundo. Restará na sua forma mais infantil, assim como a paixão por um herói da Marvel ou semelhante. Ninguém mais suporta a paixão romântica. Goethe já havia dito tudo sobre isso: o romantismo é a doença. O amor pode ser mortal. E nosso mundo é um mundo de gente saudável.
A psicanálise já havia explicado o amor como uma projeção narcísica. Nada de novo em se ver o amor romântico como uma doença. Os medievais também pensavam assim. Chegavam a descrevê-lo como uma doença do pensamento, uma obsessão causada pela visão da beleza da amada e o tormento de não conseguir viver em paz desde então.
A diferença de hoje em dia é que o amor romântico passou, de certa forma, pela mesma desqualificação da melancolia (hoje, mera depressão). Perdeu-se a reverência pela desgraça. A vida, aos poucos, se torna um parque temático para retardados. O amor romântico, um dia, foi a doença dos infelizes que morriam da sua beleza, hoje, é algo que tem a consistência de um mal-estar intestinal leve.
O filme “Guerra Fria”, de Pawel Pawlikowski, é uma história de amor. Para além do pano de fundo da Guerra Fria em si, o filme descreve o caráter patológico do amor como aquilo que os medievais diziam: infelizes os que caem sob seu olhar. A primeira cena em que os olhos do herói caem sobre a heroína diz tudo: enquanto ela canta uma música sobre as agonias de um coração apaixonado de uma mulher, o destino se prepara pra rir da desgraça que se abaterá sobre os dois.
O melhor que pode ser dito a alguém que percebe os primeiros sintomas é “fuja!”. Se você perceber o olhar dela para você, olhe na outra direção, não dirija a palavra a ela jamais, sua voz pode soar doce e encantadora. Não chegue perto dos seus cabelos jamais. Tocar as mãos é a antessala da queda. A coragem pode ser uma péssima conselheira nesse terreno. Infelizmente, mesmo a covardia é de pouca serventia porque o amor é cruel em sua dinâmica: ele exige a submissão completa de suas vítimas, sem misericórdia.
O amor é um senhor cruel pois exige de seus infelizes eleitos dedicação total. Essa dedicação implica a possível destruição de suas vítimas apaixonadas, das mais variadas formas, chegando mesmo à morte. Olhando para isso, quem pode, em sã consciência, dizer que a opção contemporânea por erradicar as formas de amor romântico não seja sábia? Quem em sã consciência questionaria a erradicação da peste como um ganho social?
No filme nada há de idealizado no amor, o que o torna ainda mais contundente. Os heróis tentam escapar do desejo de um pelo outro, mas fracassam maravilhosamente. Como sempre disse a fortuna crítica sobre o amor romântico, um dos seus piores sintomas é a destruição de todo o sentido da vida que não passe pela presença da pessoa amada.
Um dos vínculos mais clássicos na sintomatologia romântica é a coragem como filha do desespero e da tristeza. A destruição de qualquer sentido da vida como consequência da impossibilidade de
viver em paz juntos pode fazer da paixão triste que é o desespero o motor do ato radical de desistir da vida. A coragem como filha da falta de esperança gera em nós terror e piedade, como dizia Aristóteles acerca da tragédia. O amor, levado a cabo como descrevem os medievais, é sempre trágico. Nesse sentido, o filme de Pawlikowski é uma tragédia plena.
O contexto da Guerra Fria é essencial. O amor não é desencarnado da vida concreta. Nunca foi platônico, nem para os medievais. Pelo contrário, sangra. A chegada dela à França, na sequência da decisão dele de abandonar a Polônia da cortina de ferro, ilustra a desgraça do capitalismo e seu parque temático para retardados. A fúria dele em fazer sucesso no mundo “livre” o leva a mentir e criar situações em que ela mesma é posta “à venda”. “Aqui tudo precisa de cor”, diz nosso herói perdido nas promessas do mundo feliz.
O retorno deles à Polônia de nada adianta. Se o mundo da liberdade do empreendimento se afunda suavemente nas “cores” do marketing de comportamento (esse processo hoje segue a todo vapor), o mundo socialista é apenas uma mentira de outra ordem. Não é à toa que ela, supostamente, uma cantora da cultura de raiz rural polonesa, acaba cantando músicas mexicanas ridículas para uma plateia de “camaradas” abestalhados, como seu marido corno manso.
O amor tem predileção por destruir as almas intensas porque sua queda é sempre mais bela. E toda alma destruída pelo amor se torna, ao final, bela.
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