Sísifo, habitante mitológico da antiga Corinto, cidade-estado grega, era um dos homens mais astutos de sua época. Seguro de si, venceu a morte duas vezes e retornou à superfície terrestre. Tamanha audácia enfureceu Zeus, o mais poderoso dos deuses. Naquela época, a raiva divina equivalia à punição divina.
Sísifo passou a empurrar uma enorme rocha até o cume de uma montanha. Mas, perto do topo, a pedra rolava de volta a base. Sísifo tornava à penosa ascensão para, em seguida e para sempre, ver seu esforço sucumbir outeiro abaixo.
Há um paralelo dos destinos da cidade e de seu residente penitenciado. Corinto era famosa por reerguer colunas de pedras imensas, visando à reconstrução dos monumentos ruídos, que cedo ou tarde cairiam novamente e outra vez seriam reconstruídos.
Zeus, porém, assinou outro flagelo eterno, pago dessa vez, pelo titã Prometeu. O condenado ensinou aos homens como dominar o fogo e, desta forma, subtraiu um privilégio dos deuses. Em resposta à transgressão, o líder do Olimpo ordenou que Prometeu fosse amarrado a um penhasco para que diariamente uma águia comesse um pedaço de seu fígado. Como a glândula se regenera, a ave sempre teria no titã o que comer.
Qual seria o dolo da pessoa muito criativa que, ciente de sua finitude, consegue arquitetar ardis contra a morte? Mas como não punir quem corrompe toda a ordem natural? Entre os polos da inocência e da culpa encontramos o mito de Sísifo. Prometeu também desliza em ambivalências e se aproxima de Sísifo, pois ao levar para o homem o domínio do fogo o incitou à independência e a criar a ciência. O herói se contrapôs aos dogmas e às coações, portanto lançou os humanos contra a superstição e o medo.
Prometeu não lutou contra seu castigo, logo o aceitou. Por conseguinte, pôs-se a mercê da vaidade e da inveja, e mesmo assim reforçou sua fé em Zeus e negou a razão.
A águia que come o fígado é a metáfora dos sofrimentos de Prometeu. O penar nasceu da presunçosa autoconfiança humana, emergida quando os homens passaram a ter à mão a energia transformadora, antes exclusiva dos imortais. Mas a ilusão da invencibilidade é breve e se dissolve até mesmo pelo acaso.
Sísifo e Prometeu são mitos que dialogam com o nosso tempo. Sísifo somos nós, quando nos protegemos da doença mas pontualmente baixamos nossas guardas e nos expomos a ela. Ou, quando depois de curados, reassumimos nossos vícios. Prometeu somos nós, quando desafiamos, criamos, mas permanecemos limitados.
No pior momento da pandemia do coronavírus Sars-CoV-2, familiares e grupos de amigos se reúnem, pois já confraternizaram outras vezes e nada de grave aconteceu. Não importam as notícias de que vagas em UTI se escassearam ou, pior, nem mais existem. Muitas pessoas continuarão a sair de casa, todos os dias, pois não há opções para elas, e provavelmente seus receios serão renovados na sucessão das noites e dias.
O número crescente de novos casos lota hospitais. Mal um leito é desocupado e algum doente o toma, trazendo em si o medo, a ansiedade pela cura e possivelmente a culpa por algum erro contra a prevenção, eventualmente imaginário. Em muito locais os atendimentos serão improvisados, já que vaga de UTI é um mimo da sorte para poucos em meio a tamanho infortúnio. Profissionais da saúde atuam para evitar a morte que acontece, e ela acontece de novo.
Mas há luz. Em tempo recorde reconhecemos a infecção, decodificamos o material genético do vírus, criamos, testamos e comercializamos vacinas contra a Covid-19. A ciência é a base para todas essas conquistas e mesmo assim é destratada. Ao elevar o peso dos fatos, constrange quem defende axiomas falaciosos.
Após o controle da pandemia, muito dos sobreviventes seguirão sua rotinas compostas por tarefas exaustivas, intermináveis, talvez desprovidas de significado. Mas desejo que aprendam a celebrar as vitórias, mesmo as efêmeras.
Um abraço ao colega Fernando Machado, a Gladys Prado, médicos que acompanham de perto tantos dramas.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.