Ex-secret�rio de Reda��o da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve �s segundas.
'Blade Runner' h� 35 anos previa o fim do mundo que estamos vivendo
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Os atores Harrison Ford (� esq.) e Edward James Olmos em cena de "Blade Runner" (1982) |
H� filmes capazes de antecipar o futuro de forma prof�tica. Outros caem no esquecimento. O mesmo acontece com as ideias. �s vezes, o que parecia genial, o esp�rito de um tempo, se revela posteriormente um pensamento d�bil. "Blade Runner - O Ca�ador de Androides", de Ridley Scott, � um dos filmes mais influentes desde que foi lan�ado em 1982.
No Brasil, o filme teve um in�cio de trajet�ria bastante discreto, talvez porque seu lan�amento tenha sido eclipsado pelo de "ET", de Steven Spielberg. Ou porque o Brasil j� naquela �poca, no final da ditadura militar, vivesse obcecado pela pol�tica (com p min�sculo) e perdesse a capacidade de ver o impacto pol�tico (com p mai�sculo) das grandes obras de arte.
O filme estreou uma semana antes do Natal de 1982. Procure nos jornais da �poca grandes reportagens ou cr�ticas que antecipassem o sucesso e a influ�ncia que a obra teria sobre as d�cadas posteriores e voc� vai se frustrar: n�o tem, as poucas refer�ncias estavam relegadas aos verbetinhos de roteiro ou a notas sobre as participa��es do filme em festivais estrangeiros. A honrosa exce��o foi o texto "Entre a vida e a morte tecnol�gica", que Laymert Garcia dos Santos escreveu para a p�gina 3 da Folha, em 6 de mar�o de 1983. Ali, o autor destacava as complexas refer�ncias m�ticas e filos�ficas que exalam da aparentemente simples hist�ria policial do filme.
As d�cadas passaram e "ET" se tornou uma nota de rodap� na hist�ria do cinema, sucesso de bilheteria sem nenhuma transcend�ncia, uma esp�cie de "A Novi�a Rebelde" dos anos 1980. Virou p�. Enquanto isso, "Blade Runner" faz pensar e tremer as gera��es desde ent�o. As previs�es do filme parecem se realizar de forma inexor�vel: a chuva permanente � uma met�fora do aquecimento global 35 anos depois; os carros voadores est�o para ser lan�ados; as not�cias narram o desenvolvimento de clones e rob�s e os astro-cientistas estudam o desenvolvimento de col�nias humanas em outros mundos; as disparidades sociais s� aumentam e as cidades concentram toda a popula��o do planeta em formigueiros humanos cada vez maiores.
A hist�ria do filme � o perfeito resumo da trag�dia que provocamos e, por isso, vivemos: o cataclismo moral, material e ambiental, a concentra��o econ�mica que deixa aos muitos ricos a esperan�a de uma sa�da para outros astros e aos menos sortudos o lixo do planeta azul, cada vez mais marrom.
Na �poca do lan�amento, um detalhe surpreendente do filme ficou absolutamente esquecido entre n�s: a obra que em 1982 parecia prof�tica, em verdade � baseada em um texto ainda duas d�cadas mais velho, publicado pelo autor de fic��o-cient�fica Philip K. Dick (1928-1982) em 1968. O livro chamava "Do Androids Dream of Electric Sheeps?" ("Os androides sonham com carneirinhos el�tricos?"). Naquele final dos anos 1960, Dick anteviu os androides e sua rebeli�o, o homem se aventurando no papel de Deus, gerando criaturas defeituosas como o Golem da mitologia judaica.
A estreia do novo "Blade Runner 2049" consagra ainda mais a obra original, que teve desde o lan�amento tr�s reedi��es. E ao mesmo tempo em que aponta para mais previs�es apocal�pticas e realistas (como o grande dique para proteger Los Angeles do avan�o do mar, que em breve se tornar� necess�rio), levanta mais d�vidas sobre a hist�ria em si, abrindo caminho para novos filmes.
H� uma outra coincid�ncia que valoriza substancialmente a pot�ncia do filme original de Ridley Scott: a coincid�ncia com o lan�amento da com�dia "O Formid�vel", de Michel Hazanavicius, sobre um romance do diretor franco-su��o Jean Luc Godard no final dos anos 1960, ajuda a entender como ideias absurdas parecem ter imensa import�ncia em algum momento, para depois revelarem sua pequenez.
Enquanto Philip K. Dick antecipava o futuro 50 anos atr�s, certa intelectualidade europeia saudava como g�nio o diretor de "Acossado" que abandonava sua obra at� ent�o para submeter a carreira �s ideias de Mao Ts� Tung, o tirano chin�s que governava seus milh�es de ovelhas com base em um "Livro Vermelho", simulacro da B�blia criado para que ele exercesse o poder como uma deidade materialista. Meio s�culo depois, as previs�es de Dick se realizam e o livro de Mao n�o serve nem mesmo como papel higi�nico para a hist�ria.
Simulacros de homens, os androides produzidos em laborat�rio insistem em querer ter tamb�m a ess�ncia da condi��o humana ap�s o para�so: a liberdade de escolher entre o bem e o mal (e no mais das vezes optar pelo mal).
O novo "Blade Runner" mostra mais uma vez como eles conseguem superar os limites programados por seus criadores, buscando afirmar-se como uma nova esp�cie de Homo. No entanto, como no caso do rabino de Praga, criador do Golem, o dom�nio da capacidade de criar no homem � limitado; h� sempre um defeito nas cifras ou patentes que nos faz gerar monstrengos –androides rebeldes ou com problemas de sa�de e mundos que se desfazem em uma autodestrui��o galopante.
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