Ex-secret�rio de Reda��o da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve �s segundas.
At� quando o encontro do morro com a zona sul s� ser� poss�vel nas fotos?
Kitty Paranagu� | ||
Foto da mostra "Campos de Altitude", de Kitty Paranagu� |
H� algo profundamente atual nas fotografias que a carioca Kitty Paranagu� acaba de expor em S�o Paulo: ela "subiu o morro" do Rio e suas imagens s�o totalmente diferentes do que vemos no jornalismo sobre as opera��es policiais nas favelas cariocas, nos �ltimos dias. � chocante comparar as fotos da mostra e as cenas nos telejornais, ver como diante da fot�grafa que entrou desarmada nas casas das pessoas, os moradores das favelas s�o como voc� e eu ou nossos filhos: n�o est�o armados, n�o t�m cara feroz, brincam, sorriem, t�m uma express�o altiva no rosto. Est�o felizes com o encontro nas salas de suas casas, salas como qualquer casa de classe m�dia do pa�s.
Kitty visitou os morros do Rio durante o per�odo de "pacifica��o", em torno das Olimp�adas. A paz, agora sabemos, era "para ingl�s ver", paga com dinheiro federal. Bandidos do asfalto estavam assaltando os cofres p�blicos vendendo a imagem de uma opera��o pacificadora, de longo prazo, que durou s� quatros anos.
Podemos pensar que as mesmas fam�lias felizes que Kitty Paranagu� apresenta estejam agora ref�ns da disputa dos grupos de traficantes e, deles tamb�m com a repress�o do Estado (de novo, com homens e dinheiro federal).
Mergulhando um pouco mais nas fotos, h� algo profundamente inc�modo no encontro que Kitty realiza, a ess�ncia de seu projeto: ela fez imagens dos grandes projetos preparados no "asfalto" para a Copa e a Olimp�ada, e projetou nas casas das pessoas do morro, que possivelmente n�o usufruiriam dessas obras maravilhosas.
� tr�gico que o encontro que ela prop�e de forma fotogr�fica n�o ocorra na vida real. Morro e asfalto n�o se conhecem sen�o por fotos. E as imagens midi�ticas s�o, claro, muito mais disseminadas do que as de uma fotojornalista que exp�e no mercado de galerias de arte.
� surpreendente que a sociedade do Rio n�o realize com frequ�ncia o encontro do morro com o asfalto, o congra�amento que a ideologia do Carnaval diz promover uma vez por ano.
O sambista Wilson das Neves, rec�m-falecido, deixou uma composi��o chamada "O Dia em que o Morro Descer e n�o For Carnaval". Seu enredo � bastante sombrio: "O dia em que o morro descer e n�o for carnaval, ningu�m vai ficar para assistir o desfile final. Na entrada, rajada de fogos pra quem nunca viu, vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil (� a guerra civil)".
Tamb�m o dia em que o asfalto subir e n�o for o Ju�zo Final, ser� uma a��o federal. J� �, toda vez que acontece um ensaio da cena descrita por Wilson das Neves.
H� algo incrivelmente subversivo no encontro que as fotos de Kitty Paranagu� promovem, portanto, algo impens�vel na vida real, que ela realiza com a composi��o de diferentes camadas e tecnologias: ela fotografou cenas embaixo, levou para o alto do morro, projetou na parede das casas dos moradores l� em cima e os retratou envoltos na luz daquelas imagens originais.
Ao subir o morro para realizar seus encontros, sem levar consigo a rajada de fogos de "escopeta, metralha, granada e fuzil", sem provocar uma "guerra civil", o que vemos l� em cima � um encontro feliz entre pessoas iguais. H� algo profundamente libertador naquelas imagens.
Mas � dram�tico que elas tenham sido expostas exatamente quando a viol�ncia estava estourando de novo (ou talvez j� estivesse instalada h� meses). Olhando a exposi��o no contexto dos tiroteios, tem-se a impress�o clara de que n�o eram s� as obras da Copa que eram falsas, para "ingl�s ver" e os pol�ticos cariocas ganharem. Tamb�m a pacifica��o. E at� mesmo o desejo de unir os dois polos.
Ao levar o asfalto apenas representado em fotos, apenas de luz, como presen�a de uma profunda aus�ncia, Kitty n�o ajuda a saber o que aconteceria se o encontro fosse real, de carne e osso. Haveria a guerra civil ou outro encontro sorridente como o que ela realizou?
Ao mesmo tempo, ao realizar o encontro l� em cima, levando as imagens do asfalto ao morro, Kitty evita ou adia o momento de o morro descer sem ser Carnaval. H� algo ass�ptico, imobilista, em um encontro de espectros.
Poucas semanas atr�s, quando foi aberta, a exposi��o "Campos de Altitude" parecia mostrar um novo esp�rito, sugeria a possibilidade da harmonia entre os moradores do morro e da zona sul. Depois que a viol�ncia voltou a dominar os morros, as fotos, no entanto, rapidamente ganharam status de mem�ria, de um passado que mal aconteceu e j� foi, ainda que h� t�o pouco tempo.
Talvez as pr�prias fotos expliquem por que foi tudo t�o fugaz: enquanto n�o for poss�vel o encontro real entre os diferentes povos que comp�em o Brasil, enquanto ele for apenas uma foto em cart�o postal ou em projeto visual de uma artista pl�stica, nada vai mudar efetivamente.
� imposs�vel n�o pensar em S�sifo, que empurra a pedra imensa morro acima, mas, quando vai realizar seu projeto, a rocha rola l� para baixo. O encontro feliz entre cariocas do morro e da zona sul ter� que ser constru�do novamente. O projeto da mostra "Campos de Altitude", agora, � passado.
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