Ex-secret�rio de Reda��o da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve �s segundas.
Em dois autorretratos, a trag�dia africana e sua di�spora
Duas imagens de excel�ncia da fotografia afro contempor�nea foram evidenciadas nas �ltimas semanas em Londres, ambas amea�adas pelo fogo. Duas obras art�sticas constru�das a partir de selfies. Embora cada uma "no seu quadrado", estilo, hist�ria e peculiaridades, ambas exp�em a perman�ncia do sofrimento de um continente conturbado e sua di�spora.
O FINAL FELIZ - A NPG (National Portrait Gallery), em Londres, acaba de abrir uma exposi��o com autorretratos produzidos por Samuel Fosso, g�nio africano subitamente tornado estrela com reconhecimento internacional.
Fosso faz selfies desde o in�cio dos anos 1970, e a mudan�a do estilo de sua produ��o retrata as altera��es da cultura da �frica ao longo de mais de quatro d�cadas. Algumas das fotografias s�o elaboradas produ��es em est�dio, em que ele se fantasia de figuras t�picas da cr�nica africana: um ditador, l�der tribal, Muhammad Ali (como S�o Sebasti�o flechado), um homem nu, outro vestido, um morador de rua ou rica�o etc.
Na NPG, a maior parte dos trabalhos s�o selfies recentes, numa esp�cie de "samba de uma nota s�", dezenas de retratos de seu rosto que parecem ocupar, cada um, toda a tela de um tablet. O espectador percebe aos poucos as delicadas mudan�as de express�o (e emo��o). Em outra sala, cinco autorretratos feitos na juventude, na �frica.
Fosso nasceu em 1962 em um lugar que � sin�nimo de trag�dia: Biafra, o Estado nigeriano que se declarou rep�blica independente no fim dos anos 1960 e foi palco da mais violenta guerra civil do tempo da descoloniza��o africana. Ainda pequeno, ele fugiu para Bangui, na Rep�blica Centro-Africana. Como todo refugiado, penou para sobreviver. Crian�a, trabalhava em est�dio de fotografia; aos treze anos se tornou propriet�rio. Diariamente, usava as pontas de filme (normalmente jogadas fora) e fazia fotos de si mesmo.
A brincadeira virou rotina: ele passou a fazer autorretratos compulsivamente. Elaborou as produ��es, sofisticou os resultados, adotou as cores. Em meados dos anos 1990, se tornou uma celebridade regional, chegou a ganhar um pr�mio na Holanda. Mas a� a saga da guerra civil atingiu o pa�s que ele adotou.
Em fevereiro de 2014, ele j� tinha deixado a cidade quando seu est�dio em Bangui foi atacado e saqueado por milicianos que levaram tudo que acharam que tinha valor, m�quinas fotogr�ficas, m�veis, aparelhos eletr�nicos, enquanto destru�am o que n�o iam levar.
Foi quando passou, fotografando o conflito nas ruas da cidade, o correspondente de guerra Jerome Delay. Notando uma movimenta��o estranha, ele se aproximou da casa. Quando entrou, viu, no meio da destrui��o, caixas e caixas de negativos e dezenas de fotos ampliadas. Percebeu que dentro da trag�dia que engolia o pa�s, uma outra destru�a sua mem�ria. Pediu ajuda para um militar da ONU e, com ajuda de soldados que cercaram o lugar, retirou cerca de 20 mil negativos das ru�nas do est�dio. O correspondente de guerra, que desde os anos 1980 se dedica a retratar o lado mais abjeto da humanidade, foi anjo da guarda da obra de Fosso.
Hoje, o africano � uma estrela da arte mundial. Suas fotos novas ou antigas, que escaparam da trag�dia, valem milhares de d�lares, com uma posi��o semelhante � de outros grandes nomes da fotografia do continente, como Malik Sidib� (do Mali, que tamb�m desenvolveu o g�nio em um pequeno est�dio de fotos).
FOGO INCLEMENTE - O anjo chegou cedo demais para a londrina Khadija Saye; e marcou de voltar na tarde seguinte. A jovem, de fam�lia oriunda de G�mbia, morava no alto do pr�dio Grenfell Tower, que pegou fogo em 14 de junho. Sua carreira estava finalmente decolando depois de ter algumas de suas fotos escolhidas para uma mostra paralela de jovens artistas brit�nicos na atual Bienal de Veneza.
Naquele mesmo dia, ela tinha hora marcada para apresentar seu portf�lio a um galerista, iam escolher as obras de sua primeira exposi��o individual em Londres. Ele tinha querido ir ao seu est�dio, mas Khadija n�o quis receb�-lo em casa, onde trabalhava as fotos. Preferiu marcar na galeria. O fogo queimou o pr�dio, ela e a m�e n�o conseguiram fugir a tempo –hoje se sabe que as paredes externas estavam cobertas de material inflam�vel, que espalhou o fogo mais rapidamente, enquanto os alarmes de inc�ndio defeituosos n�o acordaram os moradores.
Paradoxalmente, as �nicas obras que restaram de sua curta carreira s�o autorretratos expostos em um dos principais eventos da arte mundial, a Bienal de Veneza (e suas reprodu��es na internet). Como Samuel Fosso, ela posava caracterizada como roupas e elementos tipicamente africanos, destacando objetos ligados a cren�as tradicionais. Produzia os fotogramas usando t�cnicas antigas, o que d� a eles uma impress�o de antiguidade e, por isso mesmo, eternidade.
E em todas as imagens impera o rosto da jovem Khadija Saye, que iria se consagrar se n�o morasse em um pr�dio popular vitimado por um descuido criminoso que matou, al�m dela e da m�e, outras 78 pessoas, na maioria imigrantes pobres.
DOIS SELFIES - A obra dos dois s�o autorretratos da trag�dia da �frica e sua di�spora.
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