Ex-secret�rio de Reda��o da Folha, jornalista, coautor de 'Como Viver em SP sem Carro', faz pesquisas no Warburg Institute, em Londres, com o apoio da Capes. Escreve �s segundas.
O r�dio e a histeria da "ind�stria da multa"
Danilo Verpa - 5 mar.2012/Folhapress | ||
Agente da CET multa caminh�o na ponte da Casa Verde, na marginal Tiet� |
H� muita preocupa��o no mundo com erros disseminados pelas redes sociais. No entanto, quando se trata de quest�es urbanas, como tr�nsito, certamente o r�dio tem influ�ncia muito maior, e frequentemente pior. Muito antes do Waze, o r�dio sincroniza milh�es de motoristas para que se comportem disciplinadamente como as oper�rias de um formigueiro, ensina o estudioso Norval Baitello Jr. Por isso mesmo, quando fala de tr�nsito, dissemina verdades, enganos e mentiras como um flash, mais r�pido que a "p�s-verdade" de redes sociais na era Trump.
Um dos principais hits da elei��o de 2016, o mito da "ind�stria da multa", foi alavancado pelo jornalismo radiof�nico matinal, em seu relacionamento direto com os motoristas durante o congestionamento. Falando com milh�es de dependentes do carro, o r�dio assumiu a bandeira carroc�ntrica e saiu a disparar o discurso de que as multas n�o s�o emitidas porque motoristas desrespeitam regras b�sicas mas porque uma Prefeitura cruel quer arrecadar dinheiro de inocentes.
Passada a crise hist�rica, o farisa�smo n�o para de p�: como escrevi neste espa�o, a "ind�stria da multa" � cria��o de uma pequena minoria que toma todas as multas mas grita que est� sendo perseguida: 5% dos motoristas levam 50% das multas; 30% s�o respons�veis por todas elas. Ou seja, sete em cada dez motoristas respeitam as regras e n�o s�o multados.
Alguns programas jornal�sticos matinais s�o particularmente expostos � produ��o de "pr�-verdades" radiof�nicas por duas raz�es estruturais do meio e uma circunst�ncia de alguns programas. � da ess�ncia do r�dio a aten��o parcial dos espectadores, que ouvem a programa��o enquanto dedicam olhos e o resto do corpo a outras tarefas, como o trabalho ou a dire��o do carro; em outras palavras, os ouvintes est�o necessariamente meio distra�dos. Al�m disso, as pesquisas mostram que tamb�m o tempo dedicado ao r�dio � curto, qualquer cobertura mais prolongada vai ser ouvida pela metade (por isso, as not�cias se repetem a intervalos de 20 ou 30 minutos, sem que ningu�m reclame de redund�ncia). Assim, para incutir um tema ou vers�o na mem�ria do ouvinte, � preciso martelar intensamente.
Curiosamente, embora estejam falando sobre o tr�nsito diretamente para centenas de milhares de motoristas em meio ao tr�fego, os programas de r�dio n�o costumam ter comentaristas de mobilidade –exce��o � a r�dio Tr�nsito, que s� fala do assunto. As demais d�o not�cias, �ndices de congestionamento, relatam acidentes etc., mas os eventuais coment�rios sobre mobilidade s�o sempre feitos por especialistas em outras �reas, como pol�tica e economia, que, de Tr�nsito, entendem o mesmo que de F�sica qu�ntica ou Biologia molecular: nada.
O paroxismo desse modelo � a Jovem Pan, que no ano eleitoral submeteu a discuss�o sobre regras de tr�fego na cidade (como ademais todas as outras quest�es do mundo) ao debate eleitoral tupiniquim, ou, mais particularmente, ao combate ao petismo. Assim, se a administra��o petista reduziu o limite de velocidade nas Marginais, foi por interesse do "projeto criminoso de poder". Se a arrecada��o de multas subiu, "� o projeto criminoso de poder". N�o pense o leitor que estou ridicularizando: � assim mesmo que a coisa funciona. Se o locutor l� uma not�cia sobre o DNA das baleias, o coment�rio necessariamente vai passar pelo filtro antipetista, nem que seja para acusar os golfinhos.
O resultado � um festival de absurdos em tom indignado. Na Jovem Pan, um especialista em Direito recentemente questionou a compet�ncia da Prefeitura para determinar qual a velocidade ideal para as ruas da cidade, uma vez que "o prefeito � um cidad�o como qualquer outro". A ideia � que as regras de tr�nsito devem ser tema de uma esp�cie de livre arb�trio: o que � bom para um pode n�o ser para outro, cada um escolhe o que achar melhor. Jean-Jacques Rousseau, o autor de "O Contrato Social", se virou no t�mulo: mesmo um defensor do mais m�nimo minimorum entre os Estados sabe que essa � das suas �nicas compet�ncias indiscut�veis, moderar os conflitos entre os cidad�os na sua vida em movimento.
Na �ltima semana, um especialista em pol�tica citou a arrecada��o de multas de S�o Paulo em 2016 (R$ 1,8 bilh�o) como prova de que existe a ind�stria da multa. "S�o Paulo � recordista mundial", mandou ver! Pois n�o �, como n�o poderia ser com tantas infra��es sem puni��o (4 mil para cada multa). Gra�as ao Google, custou-me aproximadamente dois minutos para constatar que Nova York, no mesmo per�odo, arrecadou 1,9 bilh�o de d�lares (R$ 6,5 bilh�es); e que Londres arrecadou R$ 2 bilh�es s� com dois tipos de multas: estacionamento irregular (R$ 1,5 bi) e multas de velocidade constatadas por radar (R$ 500 mi).
Olhando o notici�rio estrangeiro, o leitor pode obter outro ant�doto contra a histeria: a acusa��o de que existe uma "ind�stria da multa" est� em todo canto, em cidades governadas pela esquerda (como Nova York) e pela direita (como Londres, at� meados deste ano). A tal ponto que o Estado de Missouri (EUA) discute uma lei para limitar o percentual da arrecada��o municipal que pode vir de multas de tr�nsito. A origem da indigna��o s�o algumas cidades que tiram dos motoristas infratores grande parte de suas receitas. A cidade de Foristell teve 90% de sua arrecada��o em multas; v�rias tiram cerca de 30%. O legislativo estadual quer limitar o percentual ao m�ximo de 10%.
Trata-se de uma boa discuss�o: como j� expus aqui, sugiro que S�o Paulo crie uma ind�stria da multa (que poderia chamar MultaSP) para punir todas as infra��es de tr�nsito e, com os bilh�es que ser�o arrecadados, dar desconto de impostos para os cidad�os normais, a maioria silenciosa que n�o desrespeita o c�digo de tr�nsito.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade