Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Um abraço ao Ibirapuera e ao canoísta que faz entregas de comida

Ginásio está sob risco de demolição e atleta de alto nível se arrisca para sobreviver

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Era para ser mais uma noite de domingo como tantas outras. Não foi, porque naquele final de semana eu trabalhei intensamente. Exausta, cedi à pressão da família para comprar comida pronta.

Gosto de cozinhar, inventar pratos, ver todos à mesa para comer, conversar, falar sobre o dia, discutir relações e mudar o mundo.

Mas aquele foi um domingo diferente. Enquanto eu trabalhava, muitas amigas e amigos foram pela manhã dar um abraço no Complexo Esportivo do Ibirapuera. Abraçar para defender um patrimônio público, manifestando assim a indignação pelo projeto de lei que acaba com uma instalação esportiva histórica.

E assim, com a força da grana que ergue e destrói coisas belas, como já cantou Caetano em sua ode a Sampa, vemos alcaides e governadores solapar o patrimônio imaterial da cidade e do estado.

Obra do arquiteto e atleta olímpico Ícaro de Castro Mello, o Complexo é muito mais do que um ambiente para competições esportivas. Espaço público, já foi a “casa” de atletas que em início de carreira podiam não apenas treinar, mas principalmente viver dentro dele.

Migrantes esportivos vivendo o sonho de ser atleta saíram de suas cidades país afora, em busca de ser alguém na cidade grande, cheia de oportunidades. Isso mesmo, o Ibirapuera sempre foi mais do que ginásio, piscina ou pista. Por isso o termo Complexo.

Como a demanda de trabalho era imensa, assisti e participei da mobilização contra a demolição entoando a célebre expressão: “não passarão”. Mas o coração ficou pequeno diante da impossibilidade de estar ali na rua Manoel de Nóbrega de corpo presente.

Com enorme satisfação, vi que junto aos amigos e colegas ali estavam os atletas, a razão de ser do esporte, associando suas histórias, índices e medalhas àquele lugar.

Lembranças de vitórias, de encontros com outros ilustres representantes do esporte internacional, vidas cujas trajetórias teriam sido outras caso não houvesse ali um projeto de pessoas que dedicaram suas vidas a fazer o esporte brasileiro ser o que é.

Para coroar um dia de tantos embates, a chuva caiu como quem deseja lavar todas as mágoas de meses de distanciamento físico, de governantes que jamais deveriam ter sido eleitos, de desrespeito com a coisa pública.

 Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, que deve ser concedido à iniciativa privada pelo governo de São Paulo
Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, que deve ser concedido à iniciativa privada pelo governo de São Paulo - Gabriel Cabral -22.out.2019/Folhapress

Foi com esse espírito que meu filho me chamou para mostrar a identidade do entregador da comida encomendada. Num misto de espanto e satisfação, ele me disse que um atleta com sonho olímpico estava a caminho de casa. Atleta? Entregador? Como assim?

E de fato, em poucos minutos, um motoqueiro completamente ensopado chegava com uma mochila/caixa nas costas com nosso pedido. Seu nome é Marcos, canoísta, treina na raia da USP, único lugar adequado para a prática desse esporte em uma cidade com mais de 13 milhões de habitantes.

Mesmo em tempos de pandemia e calendário mutilado pela necessidade de distanciamento, ele continua a treinar. Ainda neste ano, participará de uma competição na qual poderá obter índice que lhe permitirá sonhar com uma edição olímpica ---que ainda não sabemos ao certo se acontecerá ou não.

Enquanto isso, ele trabalha. Porque em tempos de ausência de políticas públicas para o esporte, o que resta àqueles que ainda sonham em subir ao pódio é trabalhar com o possível.

Era para ser mais um domingo como tantos outros, mas não foi bem assim. O Ibirapuera sob o risco de ser demolido. Um atleta de alto nível se arriscando para poder viver e sobreviver. Na minha alma batia a frase: atletas não se compram em shoppings. Eles são formados com muitos anos de trabalho.

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