A Folha celebra seu centenário, mas o jornal que conhecemos, o do Projeto Folha e do papel decisivo no processo das Diretas Já, começou bem depois, nos anos 1980, quando este diário se projetou como o mais importante do país. Sou de uma geração que assistiu adolescente a essa transformação e percebia a Folha como uma espécie de farol nas trevas de um país irrelevante, inculto e incompleto.
Seus princípios editoriais, fundamentais naquele momento de mudanças sociais e políticas profundas, ganharam corpo, mas tiveram que ser renovados com o tempo, ainda que alguns preceitos tenham sido apenas reiterados, como o da defesa intransigente da liberdade de expressão.
Na última atualização, em 2019, uma política de diversidade foi acrescentada. O jornal reconhecia "a importância de desenvolver um ambiente plural não só em sua Redação mas na empresa como um todo". "Tornando sua própria equipe mais heterogênea, a Folha espera ampliar os seus horizontes e diversificar também a sua base de leitores", dizia o documento. Assim foi feito, com a criação de uma editoria de diversidade, a contratação de colunistas e a realização de iniciativas como o programa de trainees para profissionais negros, já em sua segunda edição.
O preâmbulo histórico se faz necessário diante dos eventos ocorridos na última semana. A publicação de um texto de Antonio Risério, no sábado (15), provocou reações em cadeia e uma inédita crise no jornal. No espaço de poucos dias, uma carta assinada por quase 200 jornalistas da empresa contra a veiculação do artigo pela Folha vazou e foi tornada pública por um concorrente. A reação dura do diretor de Redação, noticiada em reportagem do próprio jornal, foi tomada como ameaça aos profissionais da casa e criticada sem meias palavras por um de seus colunistas.
Manifestação de jornalista contra o próprio jornal não é algo incomum na Europa e nos EUA. No Brasil, em geral, ocorre atrelada a disputas trabalhistas. É difícil, no entanto, encontrar algo parecido na história recente da Folha. Muitas disputas entre repórteres e redatores e o comando do jornal aconteceram, porém nunca de maneira tão explícita e ruidosa. O jornal adora abrigar uma polêmica, costuma-se dizer. A verdade é que ele próprio virou uma.
Não precisava ter sido assim, a começar pela seleção do artigo. Se o jornal acha importante discutir a questão identitária, a ponto de voltar ao assunto reiteradamente, seria saudável variar os analistas. Risério não parece ser a única voz crítica ou a mais importante. Pelo contrário, vem se notabilizando como mero polemista, não apenas na Folha, mas também em outros veículos, como o Estadão, onde igualmente obtém espaço frequente.
Ainda que o autor fosse inevitável, não é preciso ser especialista para intuir quando um título vai dar problema ou, no caso, muito problema: "Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo". Tal tipo de conteúdo demanda antídotos de edição. O mais simples deles é publicar, simultaneamente, um artigo de oposição ou texto didático sobre o assunto —a era Bolsonaro e o negacionismo aplicado à pandemia tornaram essa prática ainda mais rotineira.
De volta aos princípios editoriais do jornal, como descrito no item sobre pluralidade, é preciso "registrar com visibilidade compatível pontos de vista diversos implicados em toda questão controvertida ou inconclusa".
O jornal fez isso nos dias seguintes, mas esse outro lado à prestação gerou acusações de ter montado uma estratégia por audiência. Quando um artigo provoca a publicação de muitos textos contrários por necessidade de equilíbrio, e foram vários desta vez, resta evidente o que se passou.
Em outubro, quando outro episódio em torno do antropólogo também provocou forte reação de colunistas e leitores, esta coluna advertiu que a dúvida não era mais se a Folha tinha colunistas e colaboradores racistas, mas se o racismo não estava no próprio jornal. "A Folha é racista?", título do artigo, foi uma das perguntas mais frequentes na caixa de entrada do ombusdman nessa última semana.
Indagava-se também se o jornal esperava algo diferente de uma Redação que a própria empresa faz força para tornar mais diversa. Parte de seus jornalistas está dizendo claramente que a ampliação de horizontes preconizada por seu projeto editorial em 2019 já é realidade. Outra percepção sobre o racismo parece o efeito mais óbvio desse processo.
Opô-lo simplesmente à liberdade de expressão é se deixar cair em armadilha, dessas que figuras como Bolsonaro adoram instalar em redes sociais.
Nós górdios, como se sabe, demandam reflexão e ocultam soluções simples depois de parecerem insuperáveis.
A Folha tem uns tantos para desatar. É preciso calma.
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