Um mundo tecnologicamente avançado, onde as máquinas dominam os seres humanos, eis o supremo clichê da fição científica distópica.
Nunca acreditei nessa premissa. A minha distopia é a inversa: um mundo tecnologicamente avançado mas onde as máquinas deixam de funcionar —sem aviso, sem explicação.
O mais recente livro de Don DeLillo, “The Silence", cumpre esse terror. Estamos em 2022. É domingo, dia de Super Bowl. Mas as máquinas —aviões, televisões, celulares, email— se apagam misteriosamente.
É o silêncio, o grande silêncio, o supremo terror do homem pós-moderno, que não apenas depende da tecnologia como vive dentro dela. “A vida pode ser tão interessante”, comenta DeLillo, “que nos esquecemos de ter medo”.
E, no entanto, como negar que a “tirania da contingência” tem uma palavra decisiva nos nossos cálculos mundanos? “Quanto mais avançados, mais vulneráveis”, afirma um dos personagens da novela.
Não é uma observação original: Rousseau, séculos atrás, já tinha alertado para essa perda de inocência que vem com a civilização. A grande diferença é que o filósofo genebrino acreditava na possibilidade de domarmos o destino, como qualquer pensador moderno.
DeLillo, um autor de formação católica, não tem essa ilusão, nem quer. E terminamos “The Silence” sem saber se a libertação da tecnologia é um castigo ou um alívio. Talvez seja ambos. Quem disse que o apocalipse não é também um recomeço?
“The Silence” está longe de ser o melhor DeLillo. A prosa tornou-se mecânica, sem o fulgor de “White Noise”, de 1985, ou “Underworld”, de 1997, duas obras-primas que interpretaram e definiram as nossas paranoias contemporâneas.
Além disso, DeLillo leva demasiado longe o velho expediente de transformar cada personagem numa espécie de “cabeça falante”, sem o sentido de ironia ou de autoironia que era possível vislumbrar em obras anteriores. Para retratar um mundo vazio não é preciso esvaziar os seus habitantes de toda a humanidade. Samuel Beckett ensina.
Seja como for, é impossível negar a coerência de um autor que, depois de Conrad, Kafka e Philip Roth, não se furta à mais desconfortável das perguntas: como conviver com o terror da contingência?
Como negar que, por detrás do esplendor tecnológico e midiático, existe uma realidade primitiva —o terrorismo (em “Mao II”), o colapso ambiental (em “White Noise”), a ruína financeira (em “Cosmopolis”), o próprio medo da morte (em “Underworld”)— que persiste em não desaparecer?
Para quem vive em bolhas de alienação e autocontentamento, ler Don DeLillo é uma forma de terapia.
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