Escritor portugu�s, � doutor em ci�ncia pol�tica.
Escreve �s ter�as e �s sextas.
Tratar dos pobres � impedir que os pobres tratem de n�s
Tive bons professores. Um deles foi John Kekes. O nome talvez n�o seja conhecido como deveria. E o fato de ser conservador n�o ajuda, embora o seu conservadorismo seja assaz heterodoxo.
Sei apenas que Kekes ajudou a mim: os seus melhores livros, como "The Morality of Pluralism" ou "A Case for Conservatism", tiveram enorme influ�ncia no meu trabalho.
Na passada semana, quando ele regressou a Lisboa para dar aulas no Instituto de Estudos Pol�ticos da Universidade Cat�lica, tamb�m eu regressei � condi��o de estudante para ouvi-lo.
Angelo Abu/Folhapress | ||
Primeiras impress�es: passaram 16 anos, e o fil�sofo, aos 81, continua na mesma. Curioso: li em tempos que a pintura era a arte que melhor promovia a longevidade. Os grandes mestres, regra geral, atingiram idades respeit�veis. Pintar, sobretudo em p�, ajuda � manuten��o da forma f�sica.
Se isso � verdade, os fil�sofos tamb�m n�o t�m raz�es de queixa. Em dois dias de aulas, foi impressionante ver um homem de 81 anos com uma clareza e intensidade de pensamento que nem sempre encontramos em gente de 30 ou 40.
O semin�rio, intitulado "The Art of Politics", pretendeu apontar tr�s erros maiores do liberalismo, entendendo-se por liberalismo a sua vers�o moderna, progressista, igualit�ria.
O primeiro desses erros � a cren�a de que o liberalismo � compat�vel com o pluralismo. N�o �, argumenta Kekes. Se o liberalismo tem como miss�o fundamental alargar a autonomia do indiv�duo, isso significa que o valor da autonomia tem sempre prioridade em rela��o aos restantes valores.
O pluralismo defende que os valores s�o m�ltiplos, incompat�veis, incomensur�veis. O liberalismo, ao conceder prioridade ao valor da autonomia, � uma forma de monismo, n�o de pluralismo.
O segundo erro � a incapacidade do liberalismo para lidar com o mal. Pior: se o liberalismo est� comprometido com o alargamento da autonomia individual, ent�o tamb�m estar� comprometido com a possibilidade de aumentar a ocorr�ncia desse mal.
O terceiro erro � que a concep��o liberal de justi�a � uma forma de injusti�a (John Rawls foi o alvo). Se a redistribui��o de recursos tem em conta aquilo que as pessoas precisam, e n�o o que elas merecem, a justi�a liberal � cega para quest�es de car�ter –e de m�rito.
S�o tr�s argumentos poderosos que convidaram ao debate vivo –e a disc�rdias v�rias. No caso, minhas.
Concordo com a primeira premissa: se o liberalismo tem a autonomia individual como valor supremo, isso significa que n�o � poss�vel aceitar, ao mesmo tempo, a no��o de que os valores podem ser incompat�veis e incomensur�veis. N�o � poss�vel conservar o bolo e com�-lo.
Por�m n�o subscrevo a ideia contr�ria de que n�o � poss�vel garantir a prioridade incondicional de certos valores –valores b�sicos que protegem a dignidade da natureza humana– em rela��o aos outros. Sem uma sociedade decente, n�o h� pluralismo para ningu�m.
Sobre o mal, o racioc�nio de Kekes � de uma l�gica exemplar: se a natureza humana � amb�gua e se o mal tamb�m � cometido por seres aut�nomos, ent�o o alargamento da autonomia pode significar um acr�scimo de mal.
O problema, penso eu, � que uma limita��o excessiva da autonomia individual impedir� tamb�m o florescimento do bem. E a �nica forma de limitar o mal –pela lei, obviamente– implica uma sociedade que foi capaz de gerar e proteger os seus bens fundamentais.
Finalmente, a justi�a. Concordo com Kekes que o liberalismo, ao redistribuir recursos sem fazer perguntas de ordem moral, � uma caricatura da no��o cl�ssica de justi�a. Ajudar algu�m que sofreu o infort�nio da doen�a � diferente de ajudar um pregui�oso profissional.
Mas, ironicamente, a minha posi��o � mais conservadora do que a de Kekes: ajudar quem n�o merece tamb�m pode ser o pre�o a pagar por uma paz social que a pobreza extrema amea�a. Para repetir o c�lebre ad�gio, tratar dos pobres � uma boa forma de impedir que os pobres tratem de n�s.
Passaram 16 anos. No final das aulas, cumprimentei o meu velho professor com a sensa��o melanc�lica de que talvez n�o voltaremos a nos ver.
Ele, com um sorriso, disse-me: "Gostei das suas observa��es".
Obrigado, professor. Mas elas n�o existiriam se as suas n�o tivessem existido primeiro.
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