Uma rua estreita na zona norte do Rio de Janeiro, uma parede de caixas de som e um palco apertado formam o salão. Na entrada, dois meninos magros, de bermuda, sem camisa e armados com pistolas e fuzis conduzem o movimento. “Tem de vinte, de dez e de cinco”, grita um deles, equilibrando o baseado na boca quase infantil enquanto espalha alguns papelotes de cocaína sobre o capô de um Santana cinza estacionado.
O som rachado do funk que sai das caixas levanta o público. Latas de cerveja e batidas com cores estranhas são consumidas sem parar. Garotos exibem orgulhosos suas armas de guerra no meio da multidão. O morador que me acompanha estranha o fato de haver mais fuzis do que o normal naquele baile.
Num boteco vejo três mesas de aço juntas e cinco homens discutindo eloquentes em volta delas. Com seus fuzis encostados na cadeira e muito ouro pendurado no corpo, olham atentamente para alguns mapas rabiscados com caneta Bic abertos sobre a mesa.
Meu objetivo é pedir autorização para filmar um videoclipe de rap na favela. Sou apresentado a um dos bandidos, que se levanta da mesa, olha fundo nos meus olhos, cumprimenta com mão firme e se apresenta como o dono daquele morro.
Peço para fotografar e ele gentilmente diz não. Explica que a data é ruim, pois esta noite estarão muito ocupados planejando uma invasão a um morro rival ao nascer do sol e que por isso seria impossível termos a devida atenção da parte deles. O traficante porém faz questão que fiquemos para o baile como seus convidados, já botando sem perguntar uma cerveja em nossas mãos.
Agora entendi porque tanto fuzil naquele dia. Bondes de outros morros vieram reforçar o exército local para a invasão. Cada um dos homens naquela mesa era dono de um morro da facção e estavam ali traçando a estratégia da guerra que se aproximava em contagem regressiva entre copos de cerveja e linhas de cocaína.
Fiquei alguns instantes olhando para aquela cena que certamente me renderia um World Press Photo ou quem sabe até um Pulitzer, mas caso eu optasse por clicá-la, um tiro na testa chegaria bem antes do prêmio. Guardei o Pulitzer na mente de onde não saiu até hoje, e sem a foto, quase 20 anos depois, me restaram as lembranças e as palavras para hoje contar a história.
No baile, traficantes cheiravam cocaína sobre o cano das armas enquanto abraçavam e beijavam meninas de shortinho e cabelo molhado. Se divertiam antes da guerra. Aquela poderia ser a última cerveja, o último beijo. Dava para sentir no semblante de cada um que eles sabiam bem disso.
O dia estava perto de clarear e o álcool já fazia em mim algum efeito quando resolvemos ir embora. Na entrada da favela, a boca ainda funcionava a plenos pulmões. Passei pela mesa da diretoria e me despedi acenando a mão.
Fui pra casa e dormi até o meio da tarde. Quando acordei liguei a TV e vi o apresentador do telejornal local falando das mais de cinco horas de tiroteio. A polícia saiu de perto e deixou o pau comer à vontade. Doze pessoas morreram durante o confronto.
Apesar da artilharia pesada, eles não conseguiram invadir o morro rival. Trocaram tiros a manhã inteira e depois voltaram para casa.
Essa é uma história antiga, mas qualquer semelhança com os absurdos que seguimos vendo até hoje na guerra civil escancarada do Rio de Janeiro não é mera coincidência.
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