� bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve �s ter�as, quartas, sextas, s�bados e domingos.
O fim dos peixes
Ci�ncia e senso comum nem sempre andam de bra�os dados, mas os bi�logos �s vezes exageram. N�o satisfeitos em ressuscitar os dinossauros, que agora passam diariamente em nossas janelas na forma de passarinhos, eles tamb�m extinguiram os peixes. Sim, voc� leu bem. Para a clad�stica, que � o ramo da biologia que organiza os seres vivos com base em suas rela��es filogen�ticas, os peixes n�o constituem uma categoria. Achou pouco? Bem, eles tamb�m eliminaram as mariposas e as zebras. Nem ouso perguntar o destino do pobre peixe-zebra.
Brincadeiras � parte, esse div�rcio entre o que nos diz a ci�ncia e o que clamam nossos instintos mais b�sicos lan�a luzes tanto sobre os rumos da investiga��o cient�fica como sobre nossa natureza. Um livro not�vel, que me foi recomendado pelo amigo Andr� Nem�sio, trata bem dessas quest�es. � "Naming Nature: The Clash Between Instinct and Science" (nomeando a natureza: o choque entre instinto e ci�ncia), da bi�loga Carol Kaesuk Yoon.
Transitando entre a hist�ria da taxonomia, a neurologia cl�nica e a antropologia lingu�stica, Yoon defende a tese ligeiramente paradoxal de que tanto a ci�ncia como o senso comum est�o corretos. No final das contas, peixes existem, ainda que mais em nossas mentes do que numa suposta organiza��o geral da natureza.
O ponto fraco do livro � o final, onde Yoon, com um fervor quase religioso, prega que o distanciamento entre os cidad�os de um mundo cada vez mais urbanizado e a natureza � um fator-chave na verdadeira extin��o em massa que est� em curso. N�o � que as esp�cies n�o estejam desaparecendo num ritmo preocupante, mas � complicado ligar isso a uma suposta falta de interesse sem apresentar evid�ncias emp�ricas. Deixemos, por�m, isso para l� e nos concentremos nas partes boas de "Naming Nature", que s�o muitas.
Para come�ar, um pouco de taxonomia, a ci�ncia que lida com a descri��o, identifica��o e classifica��o dos organismos. Em sua forma moderna, ela foi inaugurada por Carolus Linnaeus (1707-1778), que conseguiu imprimir um pouco de ordem ao caos. Ele nos legou n�o apenas os familiares nomes cient�ficos binomiais, como Homo sapiens, que resistem h� mais de 200 anos, como tamb�m a hierarquia em os seres devem ser colocados: reino, filo, classe, ordem, fam�lia, g�nero esp�cie (dica mnem�nica que funciona em ingl�s: king Philip came over for great sex).
Apesar dos esfor�os de Lineu, a taxonomia ainda tinha muito mais de arte do que de ci�ncia. Ele pr�prio se destacava por classificar esp�cimes fiando-se em instintos, ou, para utilizar um vocabul�rio mais t�cnico na "umwelt" ("mundo circundante" em alem�o), que � o nome que os bi�logos d�o � forma particular pela qual cada esp�cie v� e interpreta seu ambiente. Lineu superava seus contempor�neos porque percebia semelhan�as entre plantas e bichos que seus rivais n�o eram capazes de enxergar.
Na verdade, a taxonomia lineana se baseava justamente em ordenar os organismos com base em similitudes inscritas em nossos instintos. O que nada � peixe; o que voa � ave. E os casos controversos a gente resolve individualmente.
No s�culo 19, por�m, entra Darwin e tudo muda. O principal � que, com a teoria da evolu��o, as esp�cies deixam de ser fixas. O Homo sapiens n�o surgiu pronto no sexto dia da cria��o, mas evoluiu a partir de outras esp�cies do g�nero Homo, o qual, por sua vez, veio de outros primatas, que... at� chegar na vida terrestre primordial.
� primeira vista, essa revolu��o sabota a pr�pria ideia de taxonomia. Se o que queremos classificar est� em constante mudan�a, no que poder�amos nos fixar para estabelecer crit�rios?
Mas este � um daqueles casos em que o enigma engendra sua pr�pria solu��o. J� que � a evolu��o que gerou a exuber�ncia de seres vivos com que nos deparamos, o crit�rio para classific�-los deve ser evolutivo: esp�cies que divergiram mais recentemente devem ser catalogadas juntas, como representantes do mesmo g�nero e da� pulamos para a fam�lia, ordem, classe... A partir da�, podemos montar uma imensa �rvore geneal�gica que engloba toda a cria��o. � nisso que deve constituir a boa taxonomia, que sai da caprichosa "umwelt" e pode tornar-se cient�fica.
E os desenvolvimentos n�o pararam em Darwin. O advento de m�todos estat�sticos, bioqu�micos e de gen�tica molecular mudaram significativamente o panorama da �rea, que passou a dispor de elementos mais objetivos do que as intui��es de Lineu para hierarquizar as esp�cies. O que Darwin vislumbrara no s�culo 19 poderia enfim tornar-se realidade. Em meados do s�culo 20, Willi Hennig prop�e a clad�stica, que agrupa itens tomando por base o crit�rio de caracter�sticas partilhadas que est�o presentes no �ltimo ancestral comum das duas esp�cies, mas n�o em parentes mais distantes.
� a� que morrem os peixes. Em imposs�vel junt�-los todos numa categoria sem colocar seres estranhos no meio do bolo. Um caso emblem�tico � o dos dipnoicos, tamb�m conhecidos como peixes pulmonados. Olhando para eles, n�o h� d�vida de que s�o peixes. Nadam e se comportam como um. S� que eles tamb�m t�m pulm�es e, evolutivamente falando, s�o parentes mais pr�ximos das vacas do que de outras ordens �ctias como o salm�o. Assim, se o cladista quiser a todo custo manter os peixes como uma categoria v�lida, teria de nela incluir vacas e todos os seres portadores de pulm�es, n�s inclusive. Obviamente, faz mais sentido sumir com os peixes.
Relutamos, entretanto, em faz�-lo. E o motivo � que temos dificuldade para pensar contra nossa "umwelt". Passamos as �ltimas dezenas de milhares de anos tratando peixes como uma categoria real --e pescando-os e com eles nos fartando. A palavra existe em todas as l�nguas conhecidas. E, no que pode ser algo muito mais profundo, nossos c�rebros parecem ter m�dulos espec�ficos para pensar a natureza segundo padr�es mais ou menos pr�-definidos.
O antrop�logo Brent Berlin mostra que somos relativamente competentes para identificar nomes de p�ssaros em l�nguas de tribos que nem suspeit�vamos existir, como os huambisas do Chile. Se submetermos estudantes universit�rios a pares de palavras em huambisa nos quais um dos elementos � uma ave e o outro um "peixe" (a partir de agora acho melhor usarmos aspas), verificaremos que eles acertar�o bem mais do que os 50% esperados se as escolhas fossem totalmente aleat�rias. Como?
A resposta est� no som. Tomemos um dos pares de Berlin: "tak�ikit" e "teres". A esmagadora maioria das pessoas marca o primeiro como p�ssaro. Os fonemas da palavra parecem carregar uma onomatopeica passaridade que nossos c�rebros n�o t�m muita dificuldade para reconhecer.
Mais eloquente ainda � o caso dos pacientes neurol�gicos. A literatura registra hoje um n�mero razo�vel de pessoas que, devido a doen�as ou traumas, perderam a capacidade de reconhecer seres vivos, mantendo intactas suas outras habilidades cognitivas, incluindo o reconhecimento de objetos inanimados. H� tamb�m o movimento-espelho, de gente que deixa de visualizar coisas inanimadas, conservando a percep��o de viventes.
Em boa parte dessas situa��es, o que deflagra a cegueira para com seres vivos � uma encefalite herp�tica que provoca les�es no lobo temporal, mais especificamente o sulco temporal superior e o giro fusiforme lateral. Se a dificuldade � s� com objetos, as estruturas mais comumente comprometidas s�o o giro temporal m�dio e o giro fusiforme medial.
Seja qual for a causa, o resultado � que a "umwelt" fica de algum modo chamuscada. E, a crer no impacto devastador que essas les�es t�m sobre a vida do paciente, n�o parece exagero afirmar ela de algum modo define nossa humanidade.
Ao que tudo indica, viemos de f�brica com uma not�vel capacidade de nos interessar por seres vivos, reconhec�-los, nome�-los e categoriz�-los. E isso faz todo o sentido do ponto de vista evolutivo, j� que esses organismos s�o nossa comida e por vezes n�s a deles.
Voltando � pergunta inicial, o que dizer dos "peixes"? Eles existem ou n�o? N�o vejo muito como fugir da solu��o de Yoon. N�o d� para negar estatuto de realidade a algo que est� t�o fortemente impregnado em nossas mentes. O c�rebro praticamente clama para que vejamos "peixes" como peixes. Da� n�o decorre que precisemos obrigar a ci�ncia a operar apenas com categorias naturais. Ali�s, n�o h� nada menos natural do que l�ptons, pr�tons e quarks, mas os f�sicos n�o t�m dificuldade de trabalhar com eles. A biologia, assim, est� certa em buscar as defini��es que melhor sirvam a seus prop�sitos e enveredar pelos caminhos que surgirem sem se preocupar muito com nossas sensibilidades. A discuss�o lembra um pouco a que ocorreu no rebaixamento de Plut�o, que teve seus direitos planet�rios cassados e tornou-se um mero planetoide. L� como c�, o div�rcio entre senso comum e precis�o cient�fica gera um certo estranhamento, mas logo aprendemos a viver com isso.
Uma quest�o interessante para especular �: existe um ponto em que devemos abandonar teorias que aparentam solidez para ficar com nossas intui��es? Como j� coloquei numa coluna mais antiga, se seguirmos teorias f�sicas elegantes e bem estabelecidas ao p� da letra, temos de aceitar a exist�ncia de universos paralelos, o que obviamente fere nosso senso de realidade. A sa�da f�cil � afirmar que precisamos aguardar por evid�ncias emp�ricas de que esses mundos de fato existem. Concordo em boa parte, mas, como lembra o f�sico Brain Greene, defensor da realidade desses universos, n�o existe ideia mais contraintuitiva do que a de que a Terra se move em alt�ssima velocidade em torno de seu pr�prio eixo e tamb�m do Sol. Afinal, o que vemos � o Sol cruzando os c�us e n�o sentimos estar em movimento. Foram a ci�ncia e a matem�tica de Cop�rnico e Galileu que nos levaram ao paradigma helioc�ntrico, que hoje n�o recebe contesta��o. Evid�ncias emp�ricas mais diretas de que o heliocentrismo � real tiveram de esperar por instrumentos sofisticados que s� surgiram s�culos depois.
Existindo ou n�o "peixes", essa � uma boa quest�o para pensar � noite.
Livraria da Folha
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