Cronista, cr�tico de arte e poeta.
Arte como alquimia
Outro dia, me deparei com uma senhora que veio a meu encontro para dizer-me: "Fiquei muito feliz ao ouvi-lo dizer que a arte transforma o sofrimento em alegria". Falou isso e me abra�ou.
E a� quem ficou feliz fui eu, de ver que aquela minha opini�o tinha alcan�ado seu objetivo. � que j� estou cansado de ver e ouvir coisas que visam exatamente o contr�rio, ou seja, fazer da arte ve�culo da feiura e da banalidade.
Essa n�o � uma opini�o un�nime, uma vez que os museus e as mostras internacionais de arte, em muitos casos, exp�em coisas –ditas obras de arte– que ningu�m poria em sua sala, nem mesmo os que as exibem.
� verdade que isso n�o surgiu gratuitamente, mesmo porque a verdadeira arte n�o � apenas bom gosto e boniteza. Quando digo que o artista transforma sofrimento em alegria, estou me referindo � complexa alquimia que est� na ess�ncia de toda arte verdadeira.
Transformar sofrimento em alegria s� consegue quem efetivamente conhece o sofrimento e o sente na carne. � como Picasso quando pinta a "Guernica", tocado pela trag�dia daquela pequena cidade esmagada pela f�ria nazista.
Esse � um caso extremo, mas, por isso mesmo, serve de exemplo do que pode realizar a alquimia da dor em alegria est�tica, se bem entendido, uma vez que a crueldade presente naquele epis�dio bestial n�o se apaga como fato real.
Pelo contr�rio, a sua transforma��o em linguagem simb�lica, ao mesmo tempo que o transfigura, o perpetua como express�o de bestialidade e sofrimento. E da� mesmo a significa��o especial que aquela obra guarda em si.
N�o pretendo afirmar que toda arte nasce do sofrimento ou da trag�dia, porque, se o fizesse, estaria desconhecendo, por exemplo, a beleza das telas de Henri Matisse ou das naturezas mortas de Giorgio Morandi.
Essas obras n�o nasceram do sofrimento e, sim, da alegria de criar a beleza –do espanto, como costumo dizer– que � em suma a necessidade de acrescentar ao mundo, que j� tem tanta beleza, mais uma coisa bela. Isso porque a vida, com tudo o que nos oferece, n�o basta.
N�o s� necessitamos mudar o sofrimento em alegria, como tamb�m criar mais e mais alegrias. Por isso, escrevi, certa vez, a prop�sito da tela "A Noite Estrelada", de Van Gogh, que aos milh�es de noites expandidas universo afora (ou a dentro?), ele acrescentou mais uma, que s� existe em sua tela.
N�o encontraremos nela tantas estrelas quanto encontramos no c�u mas, em compensa��o, p�de o artista impregnar aqueles poucos cent�metros de pano com uma magia que os torna mais rico que os espa�os infinitos da noite c�smica.
� que a noite do pintor � inven��o humana, coisa nossa.
Sim, porque a noite pintada, a obra de arte, n�o � a realidade –que, por si s�, j� guarda um mist�rio insond�vel. A noite estrelada de Van Gogh n�o � a que se v� da janela do apartamento; � outra noite, inventada por sua maestria.
Por isso, quando digo que pintar � transformar o sofrimento em alegria, refiro-me � alegria que nasce da linguagem pict�rica, do mesmo modo que a alegria dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, que surge do espanto diante da vida e da magia das palavras.
Essa � a raz�o minha de acreditar que o mundo humano � inventado, mas n�o no sentido de que seja mera fantasia. Nada disso.
Existe o mundo material, que independe de n�s –o ch�o, o mar, as montanhas– cuja origem desconhecemos, e existe o mundo humano, da tecnologia, da religi�o, da arte– o qual inventamos para tornar a vida melhor.
Sei muito bem que, se a realidade n�o � simples, tampouco o � o mundo imagin�rio da arte.
Quando Picasso pintou "Guernica", foi movido pela revolta que nele provocou o bombardeio daquela pequena cidade por avi�es alem�es mas, ao pint�-lo, n�o pretendeu obviamente repetir o sofrimento que o massacre provocara e, sim, pela dramaticidade das figuras que inventou, denunciar a barb�rie dos genocidas e exaltar a grandeza da vida humana.
Por isso, cabe afirmar que, quando a obra de arte n�o consegue transcender a barb�rie ou a dor, n�o cumpre sua fun��o.
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