Cronista, cr�tico de arte e poeta.
Do fundo da noite
H� cem anos nascia, em Restinga Seca, Rio Grande do Sul, o pintor Iber� Camargo, que haveria de se tornar um dos nomes mais marcantes da moderna pintura brasileira.
Costumo dizer que a vida �, em boa parte, resultado do acaso, mas sou obrigado a admitir que certas casualidades s�o t�o especiais que parecem fruto de alguma determina��o.
Vejam isso. Estava, aos meus 18 anos, em S�o Lu�s do Maranh�o, onde nasci, quando descubro, na Biblioteca P�blica, um exemplar recente da revista "Esso", em cuja capa estava estampado um quadro moderno, uma paisagem urbana.
Foi no final da d�cada de 1940. Naquele fim de mundo onde vivia, quase nada chegava de pintura moderna. Foi aquele quadro –uma paisagem do bairro da Gl�ria, no Rio de Janeiro–, de autoria de Iber� Camargo, de quem nunca ouvira falar. Mas aquele foi o primeiro quadro moderno que me tocou e me revelou essa nova linguagem da pintura. Pois bem, jamais imaginaria, ent�o, que aquele pintor iria, no futuro distante, tornar-se meu amigo e de cuja vida, em seu final dram�tico, ia eu ter participa��o.
A trajet�ria art�stica de Iber� foi das mais significativas da arte brasileira, pois, partindo da pintura figurativa, inicialmente na linha do modernismo brasileiro, tornar-se-ia o protagonista de um momento �nico da arte do pa�s. � quando rompe com a linguagem figurativa, numa implos�o estil�stica que o leva � inven��o de um novo expressionismo, que nada deve, por�m, a qualquer tend�ncia contempor�nea.
N�o pretendo dizer que a sua pintura nada tem a ver com as demais tend�ncias da pintura moderna –o que seria invi�vel. � verdade, por�m, que, � medida em que come�a a violar a express�o realista, inicia o caminho que o levar� a um modo intensamente expressivo e original de elaborar a linguagem pict�rica.
Em certo momento, explora a riqueza da pasta pict�rica, numa entrega passional –diria cega– para alcan�ar a imagem imprevis�vel, que surge na tela como algo m�gico. Digo isso porque vivi, como modelo, essa experi�ncia indescrit�vel, ao ver minha figura surgir e desaparecer na tela, cada vez que a esp�tula fazia e desfazia e refazia minha figura diante de meu olhar perplexo.
Estando eu ali como o objeto a ser retratado, testemunhei o processo exasperado do pintor, que partiu de alguns tra�os quaisquer, donde surgiria meu rosto por ele inventado, nos lances do acaso e da intui��o. Em determinado momento, tive o �mpeto de dizer a ele: "Para, Iber�!". Mas n�o o fiz, claro, e ele prosseguiu naquela faina feita de �mpeto e mestria, at� que, finalmente, surgiu na tela uma imagem de meu rosto, que sou eu mais do que eu, uma met�fora de mim, que s� existe ali, naquela tela, naquele ac�mulo de camadas de pasta e de cores, mudada em express�o humana, vinda do fundo da noite.
Nossa amizade nasceu de um artigo que escrevi sobre a exposi��o que ele fizera na Galeria Acervo e que tinha sido ignorada pela cr�tica. A mostra n�o foi montada na sala de exposi��es da galeria, mas num espa�o do subsolo, no por�o. Iber� a fizera na esperan�a de conseguir dinheiro para pagar o advogado que o defendia da acusa��o de homic�dio.
Escrevi o artigo porque os quadros expostos eram de alta qualidade art�stica, mas, tamb�m, para responder � crueldade dos que desconheciam o seu drama e, sobretudo, seu talento de pintor. Al�m disso, as refer�ncias que surgiam sobre ele, na imprensa, "o homicida Iber� Camargo".
Ap�s ler o artigo publicado na revista "Isto�", ele me telefonou solu�ando para me agradecer e, dias depois, me convidou para ir jantar em sua casa. Nasceu a� uma amizade que durou at� os �ltimos dias de sua vida. Tenho comigo, como uma preciosidade art�stica, mas tamb�m como uma joia afetiva, o retrato meu que ele pintou naquela ocasi�o.
Pouco tempo depois, ele se mudou do Rio para Porto Alegre, onde pintou at� quando a doen�a lhe permitiu. Antes de morrer, ele me telefonou. Um telefonema de despedida.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade