Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu Folha Social+

Negros são alvo do fetiche branco ao serem retratados como vulneráveis

É preciso cobrar por políticas públicas e representações positivas da comunidade afro-brasileira na mídia

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Foi com incômodo que vi a entrevista de uma repórter da TV Globo com Madalena Silva, mulher negra que passou sua vida trabalhando em situação análoga à de escravizada para uma família branca na Bahia. Foi uma entrevista cujo destaque nas redes sociais trazia Madalena, aos prantos, manifestando conflitos em tocar na mão da jornalista, uma mulher branca.

Ao ser questionada por que relutava em interagir, Madalena argumentou que achava feio. A repórter, então, passou a dizer que a cor dela era linda e que elas não eram diferentes. Madalena respondeu que tinha diferença, sim, apontando a cor de uma e de outra. O diálogo finaliza com a repórter dizendo que o tom de pele era diferente, mas ambas eram mulheres; disse que os mesmos direitos que todo mundo tinha com ela, repórter, teriam que ter também com Madalena.

Na ilustração de fundo rosa, uma mão e antebraço, brancos, aparecem do lado esquerdo, indo em direção à mão negra que está à direita, fazendo sinal de pare
Ilustração publicada em 5 de maio - Linoca Souza

Lamento, mas os apelos da jornalista não transformam a realidade em que elas são, sim, diferentes, tanto no tom de pele quanto em sua humanidade. Fosse assim, numa simples sentença, o problema do racismo já teria sido resolvido há muito tempo. Negar as diferenças evidentes a uma mulher que passou mais de 50 anos da vida sob as condições mais aviltantes de exploração é desafiar a lógica.

E a sentença da jornalista a Madalena igualando-as em direitos não muda o fato de que Madalena seguirá com menos direitos, sendo ela uma negra retinta com as consequências de pertencer a esse lugar social. Compreender que elas são diferentes e não têm os mesmos direitos é um exercício necessário de desilusão ao deslumbre que atravessa um certo discurso alienante de ativismo social.

Mas, além disso, o que me perturba no viral de cenas como essa no Brasil, país de profundo cinismo das relações raciais, é o caráter fetichista da comoção, divinizada no imaginário da branquitude que se coloca como salvadora, enquanto confina mulheres negras em locais de dor e sofrimento.

Por décadas, Madalena foi discriminada por uma mulher como a repórter. Então, por qual motivo ela não queria tocar em sua mão? Contudo, os traumas são expostos em um espetáculo, um sensacionalismo em cima da dor de uma mulher negra que foi adoecida psiquicamente pelo racismo. Mais uma vez, puro fetiche branco.

Interessa ao poder que pessoas negras sejam retratadas no lugar de vulneráveis, violentadas, desesperançadas e carentes de qualquer apoio de pessoas brancas. São representações insistentes: mães chorando em velório de filhos assassinados pela polícia, chorando por terem sido vítimas de violências, ou mesmo chorando por receberem presentes em quadros de entretenimento.

No outro polo, laços de solidariedade intracomunidade, embora muito mais comuns do que aqueles construídos por pessoas brancas, são desproporcionalmente evidenciados. Reforçar a ideia de uma identidade negra em um país de maioria negra não é algo a ser encorajado. Da mesma forma, imagens positivas de pessoas negras altivas e independentes surtem efeitos empoderadores na autoestima da população, o que deve ser desestimulado. Por isso, vemos poucas pessoas negras destacadas em seus trabalhos.

Em um campo narrativo de transformação social, reportagens costumam se servir de mulheres negras como plataforma de manifestação de mero repúdio moral ao racismo. São escadas para a população que segue nos espaços de poder reforçar o ego heroico, redentor dos fracos e oprimidos.

Em geral, quando finalizadas, essas reportagens são acompanhadas de um olhar de indignação do apresentador ou apresentadora do telejornal, para então outra reportagem de um assunto qualquer ser anunciada. O mero repúdio moral ao racismo é consumido com uma velocidade voraz, as pessoas retratadas são abandonadas.

Considerando que racismo é uma estrutura, o repúdio moral possui um alcance limitado de atuação. São necessários aprofundamentos críticos nas reportagens, cobrança de políticas públicas e representações positivas da comunidade afro-brasileira. Já caminhamos o suficiente para que isso não seja novidade, mas para ação efetiva e, de fato, antirracista será preciso compartilhar espaços do poder com pessoas negras. Eis o dilema da branquitude fetichista.

Recentemente, escrevi nesta Folha sobre a violência sexual de meninas e mulheres indígenas, além da invasão de suas terras. A situação tem apenas piorado e agora uma comunidade inteira yanomami está desaparecida depois de denunciar o estupro seguido de assassinato de uma menina. É a barbárie, um genocídio em território brasileiro. Cadê os yanomamis?

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