Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu Rússia

Putin, nu

Aventura imperial na Ucrânia inaugurou era de anarquia, explicitada após motim

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"Potências nucleares não perdem guerras". A sentença, emitida com a gravidade de uma profunda lei histórica, circula há tempos entre os propagandistas ocidentais de Putin. Serve como álibi para sugerir uma "paz" baseada na amputação territorial da Ucrânia, que funcionaria como armistício e prólogo de nova etapa da guerra de conquista russa.

De fato, potências nucleares têm o curioso hábito de perder guerras. A França foi derrotada na Argélia dois anos depois de realizar seu primeiro teste nuclear. Os EUA sofreram uma derrota humilhante no Vietnã. A URSS retirou-se, batida, do Afeganistão, décadas antes da retirada dos EUA do mesmo país.

O presidente russo, Vladimir Putin, em reunião no Kremlin, em Moscou
O presidente russo, Vladimir Putin, em reunião no Kremlin, em Moscou - Mikhail Tereshchenko - 27.jun.23/Sputnik/AFP

A derrota militar conclui-se quando os sistemas políticos das potências experimentam crises dramáticas derivadas dos insucessos no campo de batalha. A guerra colonial na Argélia derrubou a 4ª República francesa. O atoleiro vietnamita desatou a onda de manifestações pacifistas nos EUA. O Afeganistão precipitou o colapso da URSS. Agora, o mercenário Prigojin deixou Putin nu –como reconheceu inadvertidamente o próprio Putin ao qualificar o motim abortado como potencial centelha de uma guerra civil.

O regime autocrático putinista, organizado ao redor dos aparatos securitários, alicerça-se mais no temor que na violência. O medo do governo, acompanhado por doses controladas de repressão, calou a sociedade russa. Contudo, atrás do temor, existe um contrato político implícito. Putin jamais prometeu liberdade, democracia ou prosperidade. O autocrata prometeu ordem e estabilidade, em troca da apatia política. Prigojin rasgou esse contrato.

O Kremlin putinista desafiou um princípio sacrossanto: o monopólio estatal das forças em armas. O Grupo Wagner servia aos objetivos de política externa do autocrata, mas não se subordinava à cadeia de comando militar. "Cria cuervos que te sacarán los ojos" –o provérbio espanhol ilumina as raízes do levante armado que removeu a aura de Putin. Prigojin, como tantos outros desafetos, corre o risco de morrer envenenado ou cair misteriosamente da sacada de um edifício, mas o estrago produzido por sua marcha de 800 quilômetros não será desfeito.

Depois da marcha, a Rússia tornou-se um país ainda mais estranho. Por lá, caminhar na calçada portando um cartaz em branco acarreta prisão, enquanto liderar um motim armado, derrubando aeronaves militares, não gera implicações judiciais. A aventura imperial na Ucrânia inaugurou uma era de anarquia. Como alertou Navalny, "a maior ameaça à Rússia é o regime de Putin".

"Não interessa a ninguém uma Rússia debilitada", clamou um propagandista brasileiro de Putin, identificando suas próprias preferências com os interesses mundiais. Uma Rússia debilitada –mas não fragmentada, em guerra civil– interessa à vasta maioria das nações. Mesmo assim, Celso Amorim não deveria entrar em pânico tão cedo: o autocrata do Kremlin pode obter uma sobrevida, substituindo o império do temor pelo reino da violência interna descontrolada. Assim, imitaria tiranos secundários, como Maduro e Ortega, que governam à margem de qualquer contrato social.

Na hora da tomada de Rostov, Prigojin explicou aos russos que a invasão da Ucrânia foi lançada para beneficiar a "elite oligárquica", não como defesa frente ao alegado risco de ataques da Otan. A desmoralização do pretexto oficial para a guerra envenena o espaço propagandístico do Kremlin, impondo desafios adicionais a Putin.

Nada disso significa que a guerra aproxima-se do desenlace. A Ucrânia engaja-se numa operação inédita na história militar moderna: uma contraofensiva em inferioridade numérica e aérea. É aposta de alto risco na vitória da qualidade sobre a quantidade. Se ela fracassar, estará aberto o caminho para os arautos da "paz" com anexações –e, por essa via, de uma revitalização da autocracia putinista.

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