"A História está sendo feita diante de teus olhos! Quando os teus netos perguntarem onde você estava quando...aconteceu, qual será a tua resposta?", escreveu Stephen Ayres numa postagem no Facebook em 2 de janeiro de 2021. Ayres estava no Capitólio invadido quatro dias depois, quando "aconteceu". Ele dirá a seus netos o que acabou de dizer ao comitê parlamentar de investigação: fui iludido pelas mentiras de um líder político sem escrúpulos ou limites.
A conspiração de Donald Trump para anular o veredito das urnas começou antes mesmo do triunfo eleitoral que o conduziu à Casa Branca, em 2016, por meio de incessantes referências à hipótese de fraude no sistema de voto. Espalhe a suspeita no labirinto das redes sociais, mesmo sem um pingo de evidências – eis a receita do golpista pós-moderno. Sempre haverá uma minoria disponível para funcionar como massa de manobra.
Numa reunião caótica com assessores, em dezembro de 2020, dias após a certificação da vitória de Biden pelo Colégio Eleitoral, Trump ensaiou editar uma Ordem Executiva de confisco de urnas eletrônicas pelo governo federal. O gesto catastrófico foi bloqueado pela rejeição do advogado-geral, William Barr. Naquela madrugada, o presidente tuitou a convocação da manifestação de 6 de janeiro que culminaria com a invasão do Capitólio: "Esteja lá! Será selvagem!". Ayres ouviu o chamado da "História", tomou sua decisão e não parou mais de postar.
A invasão do Capitólio foi articulada entre assessores de Trump e lideranças de milícias extremistas e organizações do supremacismo branco. Ayres, residente em Ohio, nunca envolveu-se com tais círculos – e nem sequer era filiado a algum partido. No seu depoimento, definiu-se como "um homem de família e um trabalhador". A tragédia americana encontra nele um retrato: a base de Trump é constituída por milhões de brancos da baixa classe média que, consumidos por incontáveis fracassos profissionais e pessoais, agarram-se a uma ilusão redentora.
"Eu seguia Trump em todos os sites. Eu era muito radical nas redes sociais." Geralmente, militantes organizados, como muitos que invadiram o Capitólio, resistem aos reveses, conservando sua fidelidade ideológica na hora do infortúnio. O grupo, que é sua sociedade, oferece-lhes reconhecimento e até alguma fama. Ayres, Zé Ninguém, viu-se desamparado diante das implicações judiciais de seus atos. Preso e processado, perdeu o emprego e teve que vender sua casa para custear advogados. Agora, feitas as contas, junta-se a tantos outros na conclusão de que Trump arruinou suas vidas – mas não a vida dele próprio.
Bolsonaro copia, passo a passo, o roteiro golpista escrito por Trump, começando pela difusão da suspeita sobre a integridade do sistema eleitoral. Como seu ídolo, o ocupante do Planalto aposta numa minoria fiel embriagada pela ideia de que o rumo da "História" depende de uma heroica ação de massas. Aqui, como lá, trata-se de despertar uma multidão de ressentidos, politizando a amargura no liquidificador das redes sociais.
O paralelo é imperfeito. No seu plano frustrado de confiscar urnas, Trump teria que passar por cima da autoridade dos estados. Bolsonaro, por seu lado, precisará violar as prerrogativas do TSE, que é presidido por ministro do STF. O projeto golpista de Trump lastreava-se numa densa rede de organizações extremistas cujas raízes estendem-se pelo solo do supremacismo branco. No Brasil, Bolsonaro só conta com milícias políticas insignificantes – mas rega a semente da anarquia entre generais de pijama, nos quartéis e nas forças policiais.
O enredo principal, porém, é o mesmo. Bolsonaro, como Trump, precisa do inocente útil: o "homem de família" corroído pelo ressentimento que, sozinho diante de uma tela, rende-se à força hipnótica de litanias de mentiras. Sem Ayres, o golpe morre no berço.
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