Escritor e tradutor liter�rio.
Os deuses viraram a cara
Basta uma olhada nas resenhas de "Gods Will Be Watching" no Steam e em outros cantos da internet para descobrir que alguma coisa deu errado na forma como o jogo foi vendido antes do lan�amento. S�o v�rios coment�rios negativos, quase todos ecoando a mesma decep��o.
Nascida a partir de um prot�tipo criado em 48 horas para um Ludum Dare cujo tema era o minimalismo, a vers�o estendida de "Gods Will Be Watching" foi financiada por uma campanha no Kickstarter e parecia um jogo e tanto.
"Thriller centrado em desespero, engajamento e sacrif�cio", anunciava a descri��o, prometendo "quebra-cabe�as narrativos e dilemas morais que afetar�o tanto as vidas da sua equipe quanto a das pessoas que voc� jurou proteger", tudo isso num cen�rio de fic��o cient�fica. E n�o parava por a�: "cada decis�o � crucial", "n�o h� bem ou mal, apenas decis�es" e assim por diante.
Confira o trailer do jogo:
Como se v�, a bela e original "pixel art" era t�o instigante quanto a trilha sonora. Tudo apontava para um jogo centrado em narrativa e conflitos �ticos, com personagens bem desenvolvidos. Mas o que apareceu foi algo bem diferente.
Ainda que as expectativas sobre a dire��o de arte e a trilha se cumpram com louvor, o jogo que muitos esperavam ficou apenas na vontade. "Gods Wil Be Watching", na verdade, � um "puzzle" intrincado, repetitivo e impiedoso, centrado no gerenciamento de recursos.
O jogo se divide em sete cenas, acompanhando a trajet�ria do sargento Burden ("fardo" ou "�nus", em ingl�s) e seu incr�vel talento por se enfiar em situa��es horrendas. Para avan�ar � preciso descobrir o caminho mais equilibrado para atingir o objetivo final, lidando com diversas vari�veis ao mesmo tempo.
Na primeira cena, por exemplo, Burden comanda uma equipe de terroristas que precisa "crackear" um sistema para roubar informa��es cient�ficas preciosas. Ao mesmo tempo � preciso lidar com o progresso da invas�o, com os soldados que amea�am entrar na sala e com os nervos em frangalhos dos ref�ns. Um elemento influencia o outro: atirar contra os soldados faz com que eles recuem, mas pode induzir p�nico nos ref�ns.
Tudo pode dar errado, e certamente dar� se voc� cometer qualquer deslize. Caso o cen�rio n�o seja vencido, come�a tudo de novo. N�o h� nenhum tipo de "checkpoint" e o �nico "save" acontece no in�cio das fases.
N�o � apenas a frustra��o inicial entre o que se esperava e o que de fato se recebeu que incomoda em "Gods Will Be Watching". Mesmo com a propaganda enganosa (ou erro de comunica��o: essa decis�o tamb�m � sua), o jogo deve ser julgado pelo que de fato � –e mesmo assim n�o se mostra muito bem-sucedido.
A �nfase excessiva em repeti��o acontece de forma opaca: n�o � como morrer num jogo de plataforma mais "hardcore", em que voc� sabe o que deve fazer, mas tem dificuldade em conseguir e por isso precisa repetir at� acertar. �s vezes a impress�o de que o objetivo do jogador � descobrir o que os criadores do jogo desejam que ele fa�a, o que n�o � exatamente um sucesso de design.
Alguns personagens morrem em uma cena para reaparecem sem aviso nem explica��o na fase seguinte. Isso quebra qualquer imers�o, algo que de qualquer forma n�o � f�cil de obter em "Gods Will Be Watching". A tens�o � tamanha e a mec�nica, t�o confusa, que fica dif�cil se envolver com a narrativa ou os personagens.
Fazendo o movimento contr�rio dos jogos baseados em planilhas, em que n�meros e tabelas assumem vida pr�pria e estimulam o jogador a ingressar naquele universo ficcional, aqui todos os elementos concretos acabam se tornando abstra��es, fazendo com que o jogo esfrie emocionalmente.
Exemplo: uma das fases consiste numa longa cena de tortura, envolvendo o sargento e seu companheiro Jack. Ap�s ter jogado a (longa) fase por quatro ou cinco vezes sem obter sucesso, ningu�m mais enxerga Jack ou Burden como pessoas, mas sim como algoritmos a serem resolvidos. A agonia dos personagens, que de in�cio j� se apresenta como caricata, acaba virando apenas um aborrecimento para o jogador.
Outra fase, que se passa num deserto, introduz elementos aleat�rios que atentam ainda mais contra qualquer boa vontade. �, digamos assim, uma quebra de pacto l�dico: se at� ent�o a mec�nica se baseia em tentativa e erro, de repente o acaso tamb�m come�a a ter influ�ncia. Pode at� ser realista, mas sem um sistema de "saves" mais robusto n�o h� como sustentar o interesse por muito tempo.
Assim, os sacrif�cios que devem ser feitos para avan�ar para o cen�rio seguinte perdem qualquer carga dram�tica, e no m�ximo testam a paci�ncia do jogador e sua capacidade de lidar com estresse e frustra��o, mas a baixa recompensa n�o estimula muito. � algo curioso, at�: vencer enfim um cen�rio n�o me causava uma explos�o de euforia ou uma sensa��o de al�vio, algo normal em jogos mais desafiantes. Sentia apenas um "at� que enfim" meio contrariado, e parava por a�.
De qualquer modo, "Gods Will Be Watching" tem um conceito �nico e inovador, o que pode n�o ser grande coisa se a execu��o deixa a desejar, mas tamb�m n�o � algo que possa ser desconsiderado. Pelo menos eles tentaram (e algumas pessoas gostaram).
Outra surpresa positiva � a tradu��o para diversos idiomas, inclusive o portugu�s brasileiro. O texto do jogo � bom, ocasionalmente engra�ado, e a tradu��o (at� onde pude conferir) � de boa qualidade.
Pena que o mesmo n�o possa ser dito sobre o jogo, no fim das contas. A narrativa baseada em dilemas ficou apenas na promessa. N�s, deuses-jogadores, seguimos observando –e esperando.
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