Escritor e tradutor liter�rio.
Sofrendo para aprender
No "Bardo Thodol", conhecido no ocidente como "Livro Tibetano dos Mortos", o termo "bardo" diz respeito a seis estados c�clicos de consci�ncia, tr�s dos quais ocorreriam durante e ap�s a morte, antes do renascimento. No pen�ltimo deles, o Ch�nyid bardo, haveria o risco de a consci�ncia experimentar a realidade como uma sucess�o de alucina��es assustadoras.
Essa experi�ncia lim�trofe, de nem vida nem morte, � uma condi��o familiar para quem sofre de depress�o cl�nica, e de certo vi�s os bardos servem como analogia da evolu��o de um epis�dio depressivo. Isso � demonstrado com maestria no aventure "The Cat Lady" - em tradu��o livre para o portugu�s, "A Mo�a dos Gatos"-, dispon�vel no Steam para PC (Windows e Linux).
Susan Ashworth, a protagonista, tem 40 anos, vive sozinha com seus gatos e se suicida logo no in�cio.
Em seguida, separada enfim do corpo mas n�o da vida e de suas interconex�es e consequ�ncias, sua consci�ncia vaga at�nita por um cen�rio entre t�trico e buc�lico at� encontrar uma cabana onde vive uma velha senhora, que se apresenta como Rainha dos Vermes.
Presenteada a contragosto com a imortalidade, Susan � enviada de volta � vida pela Rainha dos Vermes com a miss�o de se confrontar com cinco indiv�duos sobre os quais nada sabe.
Ap�s uma transi��o um tanto sanguinolenta, Susan aparece num hospital, sendo avaliada por um psiquiatra, e o jogo come�a de fato.
"The Cat Lady" usa com intelig�ncia elementos de horror como representa��o aleg�rica das agonias da mente deprimida.
Os "puzzles", elemento tradicional das mec�nicas do g�nero, s�o relativamente simples.
Al�m da constru��o detalhada de um cen�rio de pesadelo �ntimo conhecido por milh�es de pessoas, o forte do jogo est� na caracteriza��o. Quantos outros games poderiam ser chamados de "estudo de personagem" sem for�ar a barra? Susan n�o � monodimensional e reativa como o protagonista de "Actual Sunlight", recente "visual novel" que tamb�m lida (de maneira muito mais pobre) com os temas depress�o e suic�dio.
Nas conversas e intera��es com os outros personagens e no enfrentamento com os cinco "parasitas", n�o apenas conhecemos mais a fundo as facetas da personalidade de Susan como assistimos � desconstru��o do seu discurso.
E isso com bons di�logos, algo essencial num adventure, e uma dublagem de qualidade surpreendente para uma produ��o independente. Um game que surpreende e, como muito poucos, merece o termo "jogo adulto".
Quanto mais jogos lidarem de forma madura e direta com temas considerados dif�ceis ou n�o divertidos, melhor. A interatividade � uma linguagem poderosa, e acredito que favorece como nenhuma outra o investimento emocional, a internaliza��o de experi�ncias e a promo��o de empatia (ou, no outro lado do espectro, da falta dela).
Assim, seria uma pena se ficasse limitada � divers�o pura e simples. Nada contra a divers�o, longe disso, mas tudo contra somente ela: para que os games saiam de vez da adolesc�ncia como forma de express�o, precisamos de jogos que reflitam toda a riqueza da experi�ncia humana. Inclusive sua mis�ria.
Livraria da Folha
- Cole��o "Cinema Policial" re�ne quatro filmes de grandes diretores
- Soci�logo discute transforma��es do s�culo 21 em "A Era do Imprevisto"
- Livro de escritora russa compila contos de fada assustadores; leia trecho
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade