Escritor e tradutor liter�rio.
Documentos, por favor
Novembro terminou t�o bem. A guerra com a Kolechia chegou ao fim ap�s seis anos e nossa gloriosa na��o de Arstotzka retomou os controles de fronteira em Grestin. No dia do sorteio nacional para inspetor da imigra��o, quase n�o acreditamos: fui escolhido.
Deixei para tr�s Mirsk, minha aldeia no interior, e segui com a fam�lia para Grestin, onde ganhamos um apartamento estatal. Dezembro estava chegando e em seguida 1983, que prometia ser o melhor ano das nossas vidas: pa�s em paz, emprego est�vel, cidade grande.
Cartunista Apino | ||
Logo nos primeiros dias comecei a ficar um pouco confuso. Confesso ter imaginado que meu dia a dia seria f�cil. Conferir passaportes, aplicar carimbos e mais nada. Que inoc�ncia. N�o s� havia uma grande quantidade de detalhes aos quais atentar, mas as regras mudavam de um dia para o outro. Novos documentos exigidos, novas habilidades a serem aprendidas. Bater impress�es digitais, atestar a veracidade de selos, operar o raio-X. Todos os dias, diante da imensa fila, a primeira tarefa era decorar as novas diretrizes.
E a tens�o? Qualquer erro depunha contra mim. Primeiro s� advert�ncias, que logo se traduziam em perdas financeiras. Para cada engano, um desconto. Se eu n�o tivesse como falar com quem se aproximava do guich�, seria mais f�cil. Lidaria apenas com documentos, permitiria ou negaria a entrada e chamaria o pr�ximo. Mas as pessoas falavam. Contavam hist�rias. Pediam favores. Imploravam. Viravam gente em vez de pap�is. E �s vezes eu n�o resistia e ajudava. Mas ao mesmo tempo ganhava um dinheiro extra prendendo imigrantes por motivos f�teis.
Os sujeitos da tal Ordem de EZIC tentavam me aliciar, mentindo que Arstotzka era uma ditadura e que viv�amos oprimidos. Nunca consegui denunciar nenhum deles, e em seguida come�aram os atentados terroristas na fronteira. Ganhei acesso a armas para abater os inimigos da M�e P�tria. Para me acalmar, pendurei na parede o desenho que meu filho fez para mim com os gizes de cera que ganhou de anivers�rio.
Porque t�nhamos sobrado s� n�s dois, meu filho e eu. Com os descontos no pagamento, ficou impratic�vel sustentar aluguel, comida e aquecimento para todos, que adoeceram. Como devedores v�o para a cadeia, precisei fazer uma escolha. Fui deixando todos morrerem aos poucos. Meu tio, minha sogra, minha mulher. Todos, menos meu filho. Uma quest�o de responsabilidade fiscal. Assim pudemos nos mudar para um apartamento melhor. Todo mundo tem direito a isso em nosso pa�s. Basta usar a cabe�a.
Mas foi tamb�m esse desenho que me colocou aqui na cadeia. O inspetor me deu voz de pris�o por ter mantido o desenho na parede mesmo ap�s receber uma advert�ncia. E ele tinha raz�o, cometi um erro. Fui insubmisso. Agora meu filho est� num orfanato. Confio no meu pa�s e no meu regime. Sei que est�o sendo bem cuidados. Sei que mere�o a puni��o por n�o ter seguido as regras. Quando cumprir a pena e sair daqui, me reencontro com meu pequeno e tudo vai ficar bem de novo. Gl�ria � Arstotzka!
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O jogo � "Papers, please", de Lucas Pope, para Windows e Mac. Dispon�vel no Steam, no GOG.com e na Humble Store.
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