Havia cheiro de golpe no ar. Chico Buarque tinha 19 anos. Ainda era um desconhecido estudante da faculdade de arquitetura e urbanismo da USP. Sem ser filiado a partido algum, mostrava simpatia pelos grupos de esquerda. Ia a reuniões e assembléias, "meio gaiatamente", como dizia. Confiava na união dos estudantes e na mobilização do povo.
Na perspectiva de uma reação ao iminente avanço dos tanques, guardou garrafas de cachaça Pitu e conhaque Dreher, "que era o que se podia beber", na garagem de sua casa, para fazer coquetéis —molotov —não sem antes esvaziá-las recreativamente, como conta Humberto Werneck no livro "Tantas palavras". Infelizmente os tanques passaram e a reação, onde existiu —e Brizola é o primeiro nome que vem à cabeça—, não foi suficiente para pará-los. A mobilização geral ficou diluída e as garrafas de Chico apagadas, encostadas num canto, testemunhas melancólicas do começo dos anos de chumbo.
Alguns partiram para a luta armada —um legítimo direito à resistência. Chico fazia frente à truculência militar com palavras e música. Seu "Roda-viva", espetáculo dirigido pelo grande, grande Zé Celso, foi atacado pelo Comando de Caça aos Comunistas, que espancou atores e destruiu cenários.
Meses depois, com o AI-5, quando foi interrogado e ameaçado no Dops, Chico partiu para o exílio na Itália, onde fez shows, gravou um disco com Ennio Morricone e compôs, entre outras, "Samba de Orly", com menções veladas à ditadura. Nas horas vagas, bebia grapa com os amigos Toquinho, Garrincha e Elza Soares.
Voltou em março de 1970 e um ano depois gravou o álbum "Construção", um molotov prensado em vinil. A canção-título, obra-prima de letra, melodia e arranjos, estes a cargo de Rogério Duprat, trata da tragédia de um trabalhador que "bebeu e soluçou como se fosse um náufrago". Em outras palavras, a tragédia do homem comum sufocado pelo arbítrio.
Para passar rasteira na censura, que vivia nos calcanhares de Chico, o advogado da gravadora teria dito: "Essa vocês podem proibir". O lance ousado funcionou: só para contrariar, a liberaram, sem os cortes que costumavam aplicar. Pois é, censores também faziam birra, mesmo que fosse contra seus interesses.
Não à toa, Bolsonaro odeia a arte e artistas como Chico (o que faz lembrar do refrão de Julinho da Adelaide, pseudônimo de Chico, "Você não gosta de mim, mas sua filha gosta", escrito "para" o ditador Ernesto Geisel, cuja filha tinha declarado de fato gostar do autor de "Apesar de você").
O último ex-presidente e covarde profissional, entusiasta da linha dura, da tortura e da censura, tentou atropelar a democracia e falhou pateticamente. Foi impedido de se candidatar. Quem sabe por mais tempo, quem sabe seja preso. Motivo de muita comemoração, com cachaça, conhaque, grapa, o que estiver à mão.
Uma celebração que se soma à tristeza com a morte do criador do Teatro Oficina. Mas, fonte inesgotável de alegria que era, Zé Celso iria, quem sabe, transformar o próprio velório em festa, ainda que "no peito a saudade cative". Daí que criei um coquetel para ele, usando ingredientes das garrafas na garagem de Chico. É a luta no luto, a orgia na saudade.
REI DA VELA
30 ml de cachaça
30 ml de conhaque
30 ml de licor de laranja
15 ml de suco de limão siciliano
5 ml de xarope de açúcar mascavo
Mexa os ingredientes e coe para um copo old-fashioned com gelo. Use uma casca de limão siciliano como guarnição
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