Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu Natal

Natal é a festa da irmandade, protótipo de ciúmes e discórdia

Como Freud salientou, são as diferenças mínimas que excitam o ódio dos diferentes; odiamos mais os irmãos do que os primos

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Desde os anos 2000, qualquer refugiado asiático ou africano, quando pedia ajuda pelas ruas de Milão, parava os passeantes recorrendo ao mesmo apelativo: “Fratello, sorella…”, irmão ou irmã. Devia ser uma sugestão das entidades religiosas que acolhiam os refugiados e lhes ensinavam como pedir uma esmola eficaz.

Comigo não funcionava. Eu ficava a fim de responder um “não sou seu irmão”, acrescentando talvez um “por sorte minha”, agressivo.

Nota curiosa: essa resposta era tentadora sobretudo quando se tratava de refugiados da África do Norte, etnicamente mais parecidos com a gente. Nunca me passou pela cabeça responder assim a um negro africano. Como Freud salientou, são as diferenças mínimas que excitam nosso ódio dos diferentes. Se os camelos fossem racistas, odiariam dromedários, nunca elefantes ou girafas.

Enfim, odiamos mais os irmãos do que os primos ou outros parentes mais distantes.

Na própria Bíblia, a irmandade é protótipo de ciúmes, discórdia e ódio. E a psicanálise confirmou a Bíblia, pois o afeto “natural” da irmandade (se é que ele existe) é a rivalidade —nada de amizade “espontânea” entre irmãos.

Ilustração com uma galinha olhando para frente e no fundo a imagem de um pavão desenhando apenas com linhas sem pintar
Luciano Salles

Dia 24 é noite de Natal, uma festa da irmandade. Para um olhar cristão, Jesus é o irmão que todos gostaríamos de ter —o irmão que vem ao mundo para sacrificar sua vida por nós. Ele é o irmão que nos permitiria descobrir a fraternidade bem além da rivalidade. Descobriríamos com Cristo que sermos irmãos não significa apenas sermos rivais.

Sermos todos filhos do mesmo deus, aliás, é a declaração de um certo tipo de igualdade: somos iguais porque somos filhos do mesmo pai.

Essa sugestão da igualdade é recorrente na retórica do Natal. Jesus nasce mais que pobre (ou menos que pobre, deveríamos dizer, aliás?): ninguém se sentirá diferente por ter menos do que ele. Ou melhor, a questão de ter mais ou menos do que os outros deveria ser desqualificada de antemão, por ser irrelevante: nossa “fraternidade” supõe ou implica uma igualdade que é mais profunda e mais decisiva do que dizem nossas contas bancárias.

É bem possível que a fraternidade tenha algo a ver com a igualdade concreta (como parece lembrar o lema da Revolução Francesa), mas ainda assim é preciso entender qual é a igualdade que nos importa, ou melhor, qual é a igualdade que fundaria uma verdadeira fraternidade, feita de amizade e simpatia, e não de rivalidades —escusas, mas não menos assassinas.

A relação entre fraternidade e igualdade talvez seja destinada a ocupar nossos pensadores sociais e políticos nas próximas décadas. Explico.

Desde a primeira grande obra de Thomas Piketty, “O Capital no Século 21” (Intrínseca), ficou difícil negar que a desigualdade é a caraterística decisiva do capitalismo contemporâneo. A última, “Capital e Ideologia” (Intrínseca), confirma o veredito.

Para Piketty, já faz séculos que a cultura ocidental justifica, autoriza e perpetua a desigualdade. Quase acreditamos na ideia de que seríamos incapazes de desenvolvimento sem desigualdade. Ou seja, se quisermos melhorar o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e, em geral, as condições da vida concreta de todos, seria preciso todos crescerem, e, de alguma forma, isso dificilmente se dará sem o incentivo da desigualdade, ou seja, sem que a rivalidade oponha os irmãos e os motive.

As discussões sobre desigualdade e crescimento quase sempre terminam assim: você quer acabar com a desigualdade e a paixão humana por ela? Acha que teremos assim um mundo mais justo e mais pacífico? Tudo bem, vá em frente, mas você encara as consequências básicas? Está disposto, em suma, a viver num mundo que parará de crescer porque, nele, todos seriam iguais (ou quase iguais) à força?

Responder a essa posição anti-igualitária não é fácil. Ninguém quer um universo desigual a ponto de tornar qualquer democracia impraticável —por exemplo, qual democracia sobraria para comunidades em que poucas pessoas físicas ou jurídicas podem custear (leia-se: comprar) uma eleição?

Uma sugestão e um propósito de Natal: a solução de nossas dificuldades talvez não consista em limitar artificialmente as diferenças “autorizadas”, mas em transformar o sentido da própria diferença e mais ainda sua unidade de medida.

O que significa ser diferente? Ter mais ou menos dinheiro? Só isso? Será que um dia saberemos escrever esta frase sem aspas em “só isso”?

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