No dia 2 de junho, no Recife, um menino de cinco anos, Miguel Otávio, caiu do nono andar de um prédio de alto padrão e morreu.
Miguel estava naquele prédio acompanhando a mãe, Mirtes Renata, empregada doméstica de uma família composta por Sarí Côrte Real, Sérgio Hacker, prefeito de Tamandaré, no litoral pernambucano, e os dois filhos pequenos do casal.
Mirtes desceu para passear com a cachorra da família. Enquanto isso, uma manicure estava fazendo a unha de Sarí.
Miguel queria fugir atrás da mãe e da cachorra, mas era uma saída rápida, apressada —mais simples Miguel esperar em casa.
O vídeo da câmera de segurança mostra que Miguel entrou no elevador. Houve um diálogo dele com Sarí (a câmera não capta som —presume-se que fosse para convencer Miguel a ficar no apartamento). No fim, Sari apertou o botão da cobertura —suponho que fosse um lugar onde Miguel gostasse de brincar.
Miguel, sozinho no elevador, apertou vários botões e desceu no nono andar, onde talvez ele já soubesse que a laje do ar condicionado era acessível. Foi para lá que ele foi e de lá despencou. Será que viu a mãe de longe, tentou chamá-la?
A história parece feita para meditar sobre o sistema brasileiro de castas: a necessidade de Mirtes levar o filho para o trabalho; a pouca paciência (como disse a própria Mirtes) de Sarí, que deixou Miguel subir pelo elevador; o estranho paralelo entre o cuidado com a cachorra e o não cuidado com Miguel.
A isso se acrescentou a descoberta de que Mirtes (mais a mãe dela e outra funcionária) eram de fato empregadas pela prefeitura de Tamandaré, como se o privilégio, no Brasil, sempre estivesse ligado a alguma improbidade administrativa —por exemplo, um funcionário-fantasma pago com dinheiro público.
Assisti várias vezes ao vídeo do elevador. Naqueles breves instantes se decidiu a morte de Miguel. O que faltou para que ele se salvasse?
Ao receber repórteres do G1 de Pernambuco na casa dela, Mirtes comenta: “As paredes estão um pouco descascadas porque ele pegava as ferramentazinhas e queria brincar de pedreiro”. E comenta que quando ela não podia levar o filho, Miguel aprontava: “Subia na grade, ficava gritando, mamãe, me leva, me leva... Era cheio de energia”.
Cuidado: a “energia” de Miguel não foi responsável pela morte dele. Miguel morreu um pouco por pertencer a uma classe da qual os privilegiados fazem pouco-caso e, mais ainda, ele morreu porque ao redor dele estavam faltando adultos, cruelmente.
O que significa adulto neste caso? Simples: um adulto é alguém que não é dirigido pelo medo de perder o amor da criança e, portanto, não está com medo de frustrá-la.
Eu cresci num lar privilegiado, mas em que adultos havia de sobra. Uma situação inversa à de Miguel pode servir de exemplo. Imaginemos que minha mãe saísse e eu fizesse uma birra e me enfiasse no elevador para correr atrás dela; a empregada me puxaria pelo braço ou pela orelha para fora do elevador e talvez acrescentasse um tapa na bunda final —tudo sem medo de que eu a odiasse por isso e sem medo que minha mãe discordasse dela. Minha mãe, voltando, concordaria e acrescentaria uma punição, do tipo “para cama direto depois do jantar”.
Voltando a Miguel, Sarí foi preguiçosa porque, afinal, era “só” o filho da empregada? Ou Sarí, de qualquer forma, não saberia puxá-lo do elevador no grito ou na marra porque ela, Sari, não é uma adulta, ou seja, está com medo de frustrar uma criança?
Miguel morreu de uma incapacidade social de dizer não a um menino de cinco anos que pode aprontar porque sabe que os adultos todos, mãe ou “patroa”, vão acabar cedendo.
Em algum momento, a partir da segunda metade do século passado, perdemos a capacidade de criar e educar, porque a frustração infantil se tornou, para nós, um espetáculo insuportável.
O amor moderno pelas crianças é perfeitamente narcisista: queremos vê-las “felizes” como gostaríamos de ter sido e não fomos. Queremos que encenem a felicidade à qual aspirávamos e que não conquistamos. Elas são o remédio contra nossas frustrações. Como poderíamos frustrá-las?
Explicação sociológica complementar —as famílias pós-divórcio são o ambiente ideal para que se instaure uma luta em que exigir ou frustrar está fora de questão, porque vai que a criança gosta mais dos outros?
Em suma, a desigualdade social não ajudou. Mas, antes disso, Miguel morreu por viver num mundo com poucos adultos.
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